Fale da Venezuela, Lula. Só aí você importa
Asneiras do presidente sobre conflitos distantes encobrem o seu silêncio sobre a tragédia venezuelana, na qual ele pode influir de fato
Superando até mesmo Bolsonaro nas constrangedoras aparições que o ex-presidente fez na ONU, Lula já deixou claro, neste terceiro mandato, que enxerga o mundo como um imenso cercadinho, obrigado a aplaudir qualquer mentira, tolice histórica ou insulto que saia de sua má língua.
Tudo de ruim é possível quando ele se afasta dos roteiros preparados pelo Itamaraty, encantado pela própria voz e pela fantasia de que vai inaugurar uma Nova Ordem na história das relações internacionais.
Essa Nova Ordem, infelizmente, já está se estruturando. Mas ela é comandada por potências militares autoritárias como Rússia e China. Ao Brasil, vai sendo reservado um papel de idiota útil, muito distante da posição de liderança da autoilusão lulista.
Encontro com Blinken
Mas vamos entrar na questão do dia: felizmente, até onde se sabe, Lula se absteve de falar asneiras em seu encontro com o secretário de Estado americano Antony Blinken nesta quarta-feira, 21. Ou talvez o representante dos Estados Unidos tenha decidido simplesmente ignorar qualquer estultice dita pelo presidente brasileiro.
O fato é que no informativo divulgado depois da conversa, a embaixada americana destacou a parceria de longa data entre os dois países e os pontos de vista comuns – como a defesa de uma solução de dois Estados para o infindável conflito entre palestinos e israelenses.
Educadamente, o comunicado da embaixada americana pôs Lula no seu devido lugar como ator diplomático: uma voz coadjuvante em conflitos como o da Ucrânia e de Gaza e de maior importância no próprio quintal brasileiro.
“O secretário Blinken elogiou o presidente Lula pelo papel do Brasil na desescalada das tensões entre a Guiana e a Venezuela sobre a região de Essequibo”, diz o documento.
A nota também citou as eleições na Venezuela, que devem ocorrer em outubro deste ano, lembrando que o regime ditatorial de Nicolás Maduro prometeu realizar um pleito democrático e transparente.
Venezuela é o verdadeiro teste
Essequibo e a votação presidencial na Venezuela são os testes verdadeiros do poder de Lula. Até agora, ele parece ter dissuadido Maduro de uma invasão insana, que causaria uma guerra na América do Sul. Mas os sinais de que conseguirá demover o tiranete venezuelano de transformar as eleições numa farsa não são nada bons.
O regime bolivariano se vê hoje diante de um dilema clássico das ditaduras: é tão corrupto e brutal, e levou o país a uma miséria tão profunda, que o temor da punição caso deixe o poder impede Maduro de participar de um processo eleitoral em que tenha alguma chance de perder.
Por isso ele tira do páreo ou dá sumiço em opositoras como María Corina Machado e Rocío San Miguel. Por isso qualifica observadores internacionais isentos como “títeres do imperialismo” e tolices semelhantes.
Construir uma saída democrática para a Venezuela seria um feito histórico para a diplomacia brasileira. Da mesma forma, é pelo sucesso ou pelo fracasso em fazer com que Maduro cumpra a sua promessa eleitoral que a política externa de Lula terá de ser julgada.
Uma tragédia humanitária
As barbaridades ditas por Lula sobre Israel e Gaza sinalizam a baixa estatura moral e intelectual de quem governa o país, mas seu impacto prático – exceto, claro, para os judeus brasileiros como a jovem Rafaela Triestman, insultados e negligenciados pelo presidente que deveria cuidar deles – é limitado.
A perpetuação da leniência com Maduro também denotará uma imperdoável falência moral, mas seu impacto prático tem dimensões muito maiores. Nos últimos anos, quase 5,5 milhões de venezuelanos tiveram de deixar o seu país para fugir da fome e da repressão, numa das maiores crises de deslocamento humanitário do mundo contemporâneo. Não é preciso interromper esse processo?
As falas desvairadas de Lula sobre o que acontece longe daqui, em outros continentes, além de todos os seus efeitos deletérios, não podem servir também como cortina de fumaça para o pouco que ele diz e faz a respeito dessa tragédia vizinha – a tragédia venezuelana –, que deveria ser o maior foco das preocupações brasileiras.
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