A Constituição do vizinho é mais verde
Bill Maher, apresentador do talk show Real Time, usou uma referência inusitada para criticar a Justiça americana e o ex-presidente Donald Trump em seu programa mais recente, transmitido na sexta-feira, 26: a...
Bill Maher, apresentador do talk show Real Time, usou uma referência inusitada para criticar a Justiça americana e o ex-presidente Donald Trump em seu programa mais recente, transmitido na sexta-feira, 26: a Constituição brasileira.
Para o histórico apresentador americano, um esquerdista que se acostumou a apontar os exageros e contradições da esquerda dos Estados Unidos, os estudantes de seu país deveriam passar a estudar o documento elaborado em 1988 no Brasil, e não o fruto da reflexão dos pais fundadores da potencia mundial. O motivo? A condenação de Jair Bolsonaro a oito anos de inelegibilidade.
Maher compartilhou o vídeo em que exalta a Constituição brasileira em seu perfil no X, ex-Twitter, com a seguinte frase: “No Brasil, a política do ressentimento tem limites, mas, aqui, Trump provou que não”. Ele argumenta que Bolsonaro foi punido exemplarmente por insuflar as massas contra as instituições nacionais, o que culminou no vandalismo do 8 de janeiro, enquanto Trump segue forte, rumo a mais uma tentativa de se eleger presidente.
Olhando desse ponto de vista, sem entrar nos meandros dos dois sistemas judiciais, a análise faz algum sentido. Mas basta conhecer um pouco mais sobre a política brasileira para captar a ingenuidade do raciocínio.
In Brazil, grievance politics has limits, but here, Trump has proven it doesn't. pic.twitter.com/1Dci6MASUZ
— Bill Maher (@billmaher) January 27, 2024
Em um KFC na Flórida
Maher diz que, depois de 8 de janeiro de 2023, a maior parte do Brasil passou a considerar Bolsonaro um pária, e ele foi comer sozinho em um KFC na Flórida — durante o ridículo retiro do ex-presidente nos EUA —, enquanto Trump foi aclamado pelo partido Republicano. Mas, apesar da condenação, Bolsonaro segue como a figura mais forte da oposição contra Lula.
O apresentador americano diz também que o Brasil “se uniu em torno de seu novo líder, que andou de braços dados com líderes congressuais de esquerda e direita, em solidariedade contra o levante”. Nessa parte, a história já começa a ficar exageradamente romanceada.
A grande escorregada de Maher, contudo, é exaltar a Constituição brasileira, “que tem apenas 35 anos, enquanto a nossa [dos EUA] tem 235”, sem conhecer em detalhes como ela é usada e interpretada pelos juízes do país.
E o Lula? E o PT?
A mesma Constituição que levou à punição de Bolsonaro é a que permitiu que Lula, condenado pelo maior esquema de corrupção já desvendado no Brasil, não apenas deixasse a cadeia por questões formais e após mudança de entendimento no meio do processo, como fosse reeleito presidente do país, para o aplauso de apresentadores de talk shows americanos.
É também sob essa Constituição que centenas de invasores (e não invasores) das sedes dos Três Poderes são julgados pela mais alta Corte do país, ao contrário do que prevê o texto constitucional, que reserva a prerrogativa de foro especial apenas para autoridades eleitas e com mandato. Nos Estados Unidos, os invasores do Capitólio são julgados pelas cortes locais.
Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que condenou Bolsonaro por duas vezes a oito anos de inelegibilidade é o mesmo que cassou o mandato do deputado eleito com mais votos em uma das unidades da federação contra a recomendação do órgão acusador, o Ministério Público Eleitoral — o relator do caso era cotado para ser indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente da República, adversário do deputado cassado.
Mais verde
É possível apontar falhas e virtudes nos sistema judiciais e eleitorais de Brasil e Estados Unidos. Maher elogia, por exemplo, o sistema de votação brasileiro, que permite uma apuração expressa dos votos, muito mais rápida e menos confusa que a americana.
As dinâmicas de poder nas cortes superiores do Brasil levam os próprios brasileiros a desconfiar desse sistema, contudo — e a admirar, também com alguma dose de ingenuidade e idealização, o sistema americano. Nesse cenário, o texto constitucional e o sistema eleitoral viram meros detalhes.
A Constituição brasileira pode até parecer mais mais verde à distância, mas, antes de elogiá-la, é preciso saber como está sendo regada e aparada.
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