Hannah Arendt, a filósofa que “rejeitou” a filosofia
Para a pensadora judia, a filosofia acadêmica pode gerar passividade moral e desengajamento político

Hannah Arendt, uma das intelectuais mais influentes do século XX, rejeitou veementemente o rótulo de “filósofa”, preferindo se identificar como uma teórica política. Sua atitude, de acordo com Shai Tubali no artigo “Why Hannah Arendt left philosophy behind to face the world”, não significava (falsa) modéstia, mas uma crítica contundente ao que ela considerava a tendência à abstração e à passividade na filosofia tradicional. A judia Arendt defendia uma forma de pensamento engajada, “ativa”, que se conectasse diretamente com o mundo real, a história e a responsabilidade humana, crucial para lidar com as crises e evitar a complacência.
Da introspecção à ação pós-crise
A biografia intelectual de Arendt foi atravessada por crises pessoais e históricas, especialmente na Europa do início do século XX. Ela não era um animal acadêmico. Embora tenha estudado sob orientação de figuras como Martin Heidegger e Karl Jaspers, e suas obras As Origens do Totalitarismo e A Condição Humana reverberassem ideias de grandes pensadores, Arendt aos poucos tomou distância da introspecção filosófica pura.
Ela via a genialidade de Heidegger – com quem teve um longo, acidentado e intermitente relacionamento amoroso – como um brilho “selado do mundo”, e marcado por um “egoísmo absoluto”, alheio à realidade que não tocava. Seu desencanto com a filosofia tradicional se aprofundou quando o apoio de Heidegger ao nazismo deixou evidente que a profundidade do pensamento nem sempre garantia clareza moral ou engajamento com o mundo.
O ponto de virada definitivo para Arendt ocorreu com a ascensão do Partido Nazista. Em 1933, após o incêndio do Reichstag e as prisões em massa, ela sentiu um choque tão grande que se sentiu “responsável” dali em diante. A colaboração de muitos intelectuais com o regime a levou a uma promessa: “Nunca mais!” ao desapego. Foi nesse momento que seu pensamento encontrou a ação, levando-a a participar ativamente de movimentos antifascistas e sionistas, e a ver sua própria identidade judaica de forma política, defendendo-se “como judia” quando atacada por ser judia. Para Arendt, a filosofia havia falhado em abordar o cerne da existência humana: o homem como um ser que age no mundo político.
Importa dizer que sua interpretação do engajamento político e sua disposição à ação eram bastante diferentes de outras versões, como a marxista. Engajamento político, para ela, não consistia em adesão ideológica, mas em responsabilidade moral. Disposição à ação, por sua vez, não equivalia ao chamado de Marx para “transformar o mundo”, mas, sobretudo, para responsabilizar-se por ele.
O perigo da falta de pensamento e a moralidade ativa
A “banalidade do mal”, conceito que Arendt desenvolveu ao cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, é central para sua teoria do pensamento ativo. Em vez de ver nele um monstro, ela se deparou com a “manifesta superficialidade” de um homem que, em suas palavras, “há alguns anos, mencionei ‘a banalidade do mal’. Não quis, com a expressão, referir-me a teoria ou doutrina de qualquer tipo, mas antes a algo bastante factual, o fenômeno dos atos maus, cometidos em proporções gigantescas – mas atos cuja raiz não iremos encontrar em uma especial maldade, patologia ou convicção ideológica do agente; as personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade. Por mais monstruosos que que fossem os atos, o agente não era nem monstruoso nem demoníaco; a única característica específica que se podia detectar em seu passado, bem como em seu comportamento durante o julgamento e o inquérito policial que o havia precedido, afigurava-se como algo totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar”.
Para Arendt, a verdadeira moralidade reside no diálogo interno, e no conflito que esse diálogo provoca, resultando na capacidade de se perguntar: “Eu seria capaz de viver comigo mesmo depois disso?” Ela argumentava que somos eticamente obrigados a pensar, julgar e resistir ao mal não por ideologias prontas, mas pela reflexão constante. A passividade mental, muitas vezes confundida com o ruído de pensamentos superficiais, e a dependência de “facilidade cognitiva” (preferência do cérebro por mínimo esforço) nos levam a julgamentos rasos e ao “efeito manada”.
Alguém se identifica?
Segundo Shai Tubali, a filósofa que “disse adeus à filosofia de uma vez por todas” via todas as ideologias, mesmo as bem-intencionadas, como capazes de embotar a mente, e por isso ela própria rejeitava rótulos políticos. A liberdade genuína, para ela, consiste em pensar de forma renovada e julgar por si mesmo, momento a momento, o que é certo fazer. A capacidade de pensar, de sentir o ferrão de uma espécie de “má consciência”, é o que nos mantém humanos, e nos prepara para enfrentar o mundo em sua complexidade.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)