Populismo, zoneamento urbano e a crise da moradia no Brasil
Falta de moradia não se deve apenas a falhas nas políticas habitacionais, mas também a normas urbanísticas que mais atrapalham que ajudam

O Brasil enfrenta um déficit habitacional persistente. Apesar de investimentos públicos expressivos, a dificuldade não se deve apenas a falhas nas políticas habitacionais, mas também a um conjunto de normas urbanísticas que, em vez de facilitar, criam barreiras para a produção de moradias acessíveis.
Especialistas apontam que as restrições impostas pelo zoneamento urbano e pelas exigências edilícias inviabilizam a construção de unidades compactas e de baixo custo em áreas urbanas já consolidadas. Essa dinâmica eleva o preço das propriedades, uma vez que a oferta de imóveis não acompanha a demanda.
Uma alternativa promissora para atender à população de baixa renda são as quitinetes. Essas pequenas unidades podem se adaptar a diferentes usos – moradia permanente, alojamento de curta duração ou hospedagem com serviços. Elas permitem um uso mais eficiente do solo em regiões centrais, aproveitando a infraestrutura de transporte, serviços e equipamentos urbanos já existentes.
Isso ajuda a evitar a expansão desordenada das cidades, que gera custos elevados para o poder público e para os moradores, além de reduzir a dependência do transporte individual, aliviando congestionamentos e emissões.
Restrições e consequências socioespaciais
Mas a construção formal de quitinetes é severamente limitada pelas leis de uso e ocupação do solo. Frequentemente, essas normas permitem apenas residências unifamiliares, mesmo em terrenos grandes com alto potencial construtivo, impedindo a divisão em unidades menores.
Mesmo onde o uso multifamiliar é permitido, exigências como quotas mínimas de terreno por unidade e parâmetros rígidos de construção (dimensões de cômodos, corredores, etc.) tornam projetos compactos economicamente inviáveis. A adaptação de edifícios comerciais obsoletos para moradia, uma estratégia importante para revitalizar centros, também esbarra nessas regras.
Em São Paulo, por exemplo, atividades de alojamento em zonas mistas podem exigir vagas de estacionamento, tornando empreendimentos em terrenos pequenos inviáveis.
As consequências desse quadro regulatório são profundas. Ao restringir moradias acessíveis em locais bem servidos, as cidades empurram a população de baixa renda para as periferias distantes, com acesso limitado a serviços e empregos.
Esse “espraiamento urbano” aumenta custos de mobilidade, intensifica a segregação socioespacial e sobrecarrega redes de transporte. A escassez em áreas centrais infla aluguéis, prejudicando trabalhadores, jovens e estudantes, e incentiva a informalidade habitacional. É um ciclo onde a própria legislação urbana gera exclusão e ineficiência.
Caminhos para a mudança e perspectivas de especialistas
Diante desse cenário, uma mudança de rota nas políticas urbanas é necessária. A desregulamentação inteligente é apontada como fundamental, removendo barreiras artificiais sem comprometer segurança ou salubridade.
Isso inclui revisar leis para permitir usos multifamiliares e de alojamento amplamente e eliminar exigências desproporcionais, como mínimo de vagas de garagem ou dimensões excessivas. Para edifícios antigos, regimes simplificados de retrofit são essenciais.
O objetivo é liberar o potencial construtivo já existente, permitindo que o mercado responda à demanda por habitações compactas, promovendo diversidade em áreas centrais.
Segundo Raul da Mota Silveira Neto, professor da UFPE e especialista em economia urbana, as normas de zoneamento contribuem para o aumento dos preços dos imóveis e o espraiamento urbano. Ele cita um estudo sobre a lei de Recife que limitou alturas em 12 bairros, resultando em aumento de preços de apartamentos nesses locais (7-10%) e desvalorização de casas (25%), ao passo que bairros vizinhos não regulados verticalizaram e cresceram.
Para ele, a lei não resolveu o problema, mas o “jogou para o lado”, gerando gentrificação em áreas próximas e deslocando a população de baixa renda. Silveira Neto prevê que a melhoria dos serviços de acessibilidade, incluindo moradia, será foco das políticas públicas nas próximas décadas. Ele argumenta que, economicamente, as cidades não deveriam ter taxas como a outorga onerosa para permitir mais construções a preços menores.
Fernando Ferreira, economista e professor na Universidade da Pensilvânia, analisou os efeitos da reforma da Lei de Zoneamento de São Paulo de 2016. Ele observa que a lei aumentou o potencial construtivo (FAR) em áreas centrais próximas a corredores de transporte, enquanto manteve ou diminuiu em bairros estabelecidos.
O estudo indica que, a longo prazo, onde a densificação foi permitida, houve aumento nos pedidos de licença. Segundo Ferreira, mais disponibilidade de moradias nessas áreas leva à redução de preços e aluguéis, o que é benéfico, especialmente para jovens e pessoas de menor renda, permitindo morar perto do trabalho.
Contudo, ele ressalta que a reforma de São Paulo foi insuficiente para o déficit e que uma reforma radical seria necessária, embora possa gerar reação de proprietários cuja “riqueza habitacional” diminui. Sobre como aprimorar as cidades, Ferreira sugere que o poder público se concentre em reduzir a burocracia para a construção privada e investir em infraestrutura (transporte público) para suportar a densidade, em vez de cobrar taxas que encarecem a moradia.
A função do urbanismo deve ser proteger o interesse coletivo, facilitar e garantir a convivência, não restringir artificialmente as opções de moradia, ainda que com boas intenções. Adotar uma política urbana mais baseada em liberdade e pluralidade, menos em populismo centralizador e regulatório, é crucial para cidades mais justas e sustentáveis. Cidades feitas por gente, para gente.
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