Gustavo Nogy na Crusoé: Colorindo um futuro em preto e branco
Editoras, editores, mídia especializada e escritores têm assumido de uma vez por todas o medo de ler

Parece que os livros de colorir para, aspas, adultos estão de volta. Dos vinte mais vendidos nos últimos meses, quatro são para que senhores e senhoras usem lápis de cor ou giz de cera, em vez de raciocínio e imaginação.
A coleção Bobbie Goods é o que há de mais importante na categoria “não-ficção”.
O sucesso editorial não deveria surpreender. Se livros nunca foram a distração preferida de muita gente, agora editoras, editores, mídia especializada e escritores têm assumido de uma vez por todas o medo de ler.
Você sabe o que é um “leitor sensível”? Eu, desinformado, acreditava que o leitor sensível fosse quem lia com atenção, acuidade, sensibilidade; quem tentava compreender um texto para além do que nele ia explícito.
Leitor sensível seria o leitor comum, que lia o texto – poético, ficcional, teórico – e percebia seu centro de gravidade, suas nuances e ambiguidades, suas intenções mais ou menos ocultas, suas limitações e camadas.
Descobri que não. De uns anos pra cá, leitor sensível é um profissional que as editoras contratam para aferir o grau de suscetibilidade do distinto público. Há nome para isso: “sensitivity reader”.
E o distinto público, convenhamos, está cada mais suscetível. Tudo dói. Piadas já não são piadas: são opiniões.
Divergências já não são divergências: são agressões. Controvérsias já não são controvérsias: são batalhas.
A criação artística e o debate intelectual estão empanturrados de proibições, vetos, correção, boas maneiras, bons modos, tricô e crochê. Todos têm de quê e a quem reclamar, numa espécie de neopuritanismo laico e policialesco.
A brilhante ideia acerca do “sensitivity reader” é que representantes de grupos sociais sejam pagos para que o escritor não corrompa os cidadãos ou não fira os sentimentos.
O representante dos leitores apontará com seu dedinho social o que deve ou não deve ser dito à sociedade.
De acordo com os critérios previamente elencados, estarão sub judice todas as obras que tratarem de temas relacionados a: cor; nacionalidade; sexo; gênero; etnia; vícios; condições psiquiátricas; deficiências físicas; etc.
Em suma: toda literatura ocidental, oriental e das cercanias.
O probleminha é que das primeiras representações nas cavernas ao último romance contemporâneo, de Homero à Bíblia, de Shakespeare a Nelson Rodrigues – nove décimos da literatura produzida desde que o mundo é mundo ferem, e devem mesmo ferir, suscetibilidades.
Se não ferissem, não seriam literatura – seriam livros do Paulo Coelho.
Então corrijamos o racismo Monteiro Lobato? Saneemos o fascismo de Louis-Ferdinand Céline? Verifiquemos se Shakespeare foi multicultural o bastante? Submetamos Ezra Pound ao Roda Viva?
O que as madres superioras do politicamente correto precisam entender é que a literatura é um jogo em que valem certas regras que não valem para a vida, como num esporte de combate em que faz parte da regra machucar o adversário.
Dentro de um ringue, certo nível ou certo tipo de violência é permitido. Na vida cotidiana, outro.
Crime e Castigo, por exemplo, não é um manual para aprender a matar velhinhas agiotas com o professor Raskólnikov, mas uma devassa na alma de um estudante intoxicado pela ambição e torturado pela culpa.
E é justamente essa liberdade circunscrita da arte – ou dos esportes, ou do treinamento marcial – que permite a reflexão profunda sobre o que há de melhor e pior na natureza humana.
Além disso, ajustar textos à nova atmosfera moral é ignorar a historicidade desses textos. Literatura é feita por toda a gente, boa ou má, de sua época.
Apagar pecados, preceitos e preconceitos é desconhecer o passado e revivê-lo no futuro.
Censurar alguns livros em nome de sentimentos alheios é o mesmo que censurar sentimentos alheios em nome de alguns livros. Que diferença tem isso com a censura stricto sensu? Nenhuma.
Escrevo e corrijo – na verdade, existe uma diferença: nos porões da censura estatal, os bandidos tinham cara de bandidos e os mocinhos tinham cara de mocinhos.
Na censura social, não sabemos quem é quem.
No livro Fahrenheit 451, Ray Bradbury…
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