Um golpe muito louco
Uma mistura de falta de noção com disciplina militar inundou a investigação da Polícia Federal com provas sobre as tratativas para uma trama de golpe de Estado
Apoiadores de Jair Bolsonaro desdenham da investigações da Polícia Federal sobre tentativa de golpe de Estado aludindo ao antigo programa de tevê Os Trapalhões (foto). A imagem é perfeita, mas não para criticar os investigadores, e sim os investigados.
É difícil imaginar uma operação policial na qual os suspeitos tenham produzido tantas provas contra si mesmos. Isso parece o resultado de uma mistura entre falta de noção sobre o estado das coisas no Brasil — e no mundo — e a disciplina militar.
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Que chance teria de dar certo um golpe militar no Brasil em 2022? Basta olhar para a tão (merecidamente) criticada Venezuela de Nicolás Maduro para entender que essas coisas se fazem de outro jeito hoje em dia.
O exemplo de Chávez
Hugo Chávez tentou um golpe de Estado com militares em 1992, mas só conseguiu instalar sua ditadura depois de eleito, em 1998, por meio da cooptação progressiva das instituições venezuelanas — digamos que o PT tem um pouco mais de expertise sobre esse assunto.
Em 2002, o próprio Chávez seria alvo de um golpe militar, que acabou apenas fortalecendo seu poder, repassado posteriormente para Maduro.
Hoje, o herdeiro de Chávez se mantém no poder graças ao apoio dos militares, mas seus truques eleitorais só se sustentam porque todo o Estado venezuelano está infectado pela “revolução bolivariana”.
Só faltou reconhecer firma
Faltava ao entorno palaciano de Bolsonaro, portanto, essa noção histórica básica, mas sobrou disposição para deixar tudo meticulosamente registrado, com uma ou outra comprometedora tentativa de dissimulação.
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O tenente-coronel Mauro Cid, que atuava como ajudante de ordens de Bolsonaro e firmou a deleção premiada mais relevante desse caso, chegou a montar uma apresentação em cinco slides com um plano de fuga para o então presidente.
Cid também admitiu, em troca de mensagens, ter produzido conteúdo falso sobre a lisura do sistema eleitoral, sobre hackers terem encontrado vulnerabilidades nas urnas: “Nosso pessoal que fez… Haaahahaaahha“.
Plano impresso
Além disso, o plano “punhal verde amarelo”, elaborado para “neutralizar” o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e os então presidente eleito Lula e vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, foi impresso no Palácio do Planalto pelo secretário-executivo da Secretaria-geral da Presidência, general Mário Fernandes.
Um dos memes bolsonaristas debocha das investigações dizendo que o plano para sequestrar Moraes só não teria ocorrido porque um dos participantes não conseguiu pegar um táxi.
Na verdade, o indivíduo que se identificava como “Gana” no grupo “copadomundo2022” do aplicativo Signal reclamava da dificuldade para achar um táxi no qual pretendia fazer sua “exfiltração” (retirada de território inimigo) da ação abortada.
“Sanhaço pra achar táxi“
“Sanhaço pra achar táxi. Mas vou chegar. Kkkk”, diz Gana nas mensagens, o que caberia perfeitamente no roteiro de um filme de Sessão da Tarde intitulado “Um golpe muito louco” ou “Um golpe do barulho”, cujo cartaz seria ilustrado com o meme de Moraes com cabeça de pênis, registrado no relatório da PF por troca de mensagens (abaixo).
Na sequência, Gana manda um áudio:
“Cara acabei de chegar um ponto de táxi aqui tinha um maluco só que ele falou que tava indo buscar um passageiro e ia chamar um táxi aqui pra mim tá ligado? Dá uns cinco minutinho aqui pra ver se, se chega. Eu acho que agora vai resolver, Mas tá pica, mané. Essa hora não tem táxi em lugar nenhum, né.“
Não chegou ainda
A saga de Gana continua. Cerca de 20 minutos depois, ele manda outro áudio:
“Irmão, ainda não achei, cara. Mas tô…quase chegando no shopping aqui agora. No Pátio Brasil. Andei a Asa Sul inteira. Pô, se não tiver no shopping aí eu desisto, cara“.
Só então Gana teria recebido uma carona do major Rafael de Oliveira, identificado como o comandante de toda a ação que acabou abortada.
Nada de Uber
Todo esse esforço para achar um táxi se justificaria pela intenção de não deixar seu caminho registrado por um aplicativo como o Uber.
Esse cuidado, entre outros, como a habilitação em nomes de terceiros dos chips dos celulares usados na ação, contrasta com os numerosos registros deixados em trocas de mensagem por boa parte dos 37 indiciados pela PF.
“Senta o pau no Batista Júnior. Povo sofrendo, arbitrariedades sendo feitas e ele fechado na mordomia. Negociando favores. Dai [sic] para frente. Inferniza a vida dele e da família”, diz o general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa, ao capitão reformado Ailton Gonçalves Moraes Barros, em referência a Carlos Baptista Jr.
Estado de sítio
Braga Netto praguejava após o então comandante da Força Aérea Brasileira (FAB) ter se recusado, junto com o comandante do Exército, Marco Antonio Freire Gomes, a aderir às tramas de golpe travestidas de medidas constitucionais, como destaca a edição desta semana de Crusoé.
Para quem ainda não acredita que houve trama para permanecer no poder sem voto, o próprio Bolsonaro admitiu, após a divulgação do relatório da PF, que discutiu com militares decretar estado de sítio ou estado de defesa e a utilização do famigerado artigo 142. A tal “minuta do golpe” foi apresentada aos comandantes, segundo Freire Gomes.
“Golpe usando a Constituição? O que está dentro da Constituição você pode utilizar”, argumentou, praticamente confessando as tramas para golpe. Ao se defender com a Constituição em punho, Bolsonaro ignora que, no golpe militar de 1964, foi o Congresso Nacional que decretou vaga a presidência, apesar de João Goulart estar no Brasil. Tudo dentro da lei, certo?
Tem até vídeo
Nada se compara, contudo, à reunião do Palácio do Planalto gravada para a posteridade, na qual Bolsonaro instrui seus ministros a reverberar o discurso de fraude eleitoral apesar de seu entorno não ter conseguido qualquer prova de ilícito, limitando-se a semear desconfianças.
É nessa reunião que o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), diz que “se tiver que virar a mesa, é antes das eleições“ e sugere montar um esquema de acompanhamento dos “dois lados” por meio da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
“O problema todo disso é se vazar qualquer coisa. Muita gente se conhece nesse meio e, se houver qualquer acusação e infiltração desses elementos da Abin em qualquer dos lados…”, vai dizendo Heleno, até ser interrompido por Bolsonaro.
“Ô general, eu peço que o senhor não fale, por favor. Não prossiga mais na tua observação aqui. Eu peço que não prossiga na tua observação! Se a gente começa a falar ‘não vazar’, esquece, pode vazar. Então a gente conversa em particular, na nossa sala, sobre esse assunto, o quê que porventura a Abin está fazendo. Tá?”
Solta a trilha de Os Trapalhões.
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