Os militares tiveram sua chance
Militares indiciados pela PF por tentativa de golpe de Estado referendaram toda a desconfiança verbalizada sobre as Forças Armadas desde o fim da ditadura inicia em 1964
A política brasileira viveu refém da ditadura militar por mais de 30 anos. Com exceção de Fernando Collor, todos os presidentes eleitos até 2014 eram de esquerda, mesmo Fernando Henrique Cardoso, que se prestou ao incômodo papel de direitista por anos — o tucano confessou em suas memórias a dor das privatizações, que nem seu partido se prestou a defender direito.
O PFL, decorrente da Arena, passou seus primeiros anos de vida discreto, defendendo feudos regionais e comandando o Congresso Nacional, até começar a mudar de nome na tentativa de se afastar do estigma ditatorial, enquanto o PSDB ocupava, meio a contragosto, o papel de partido liberal — e até conservador —, empurrado pelo PT para essa posição.
Durante esse período, os militares, que sempre carregaram o rancor de terem sido punidos pela história por sua alegada tentativa de salvar o Brasil do comunismo, se recolheram da disputa política. O governo de Jair Bolsonaro surgiu como uma possibilidade de redenção, e eles a abraçaram forte demais.
Não era um convite
A eleição de Bolsonaro marcou a interrupção do domínio da esquerda no governo federal, e era legítimo interpretar que isso seria um tipo de perdão aos militares, mas não necessariamente um convite a voltar a participar do jogo político.
O desfecho do governo Bolsonaro mostra, nas reuniões gravadas, nas mensagens trocadas e nas minutas impressas, que a perspectiva dos militares sobre a política tem mais a ver com a ditadura instaurada em 1964 do que com o discurso do “respeito às quatro linhas da Constituição” de Bolsonaro.
A ironia da história é que, a julgar pelas investigações da Polícia Federal, os planos de permanecer no poder só não foram mais longe por causa de dois dos três comandantes militares, e eles também pagaram um preço por isso.
Humilhação na enchente
O ressentimento da porção do Brasil que esperava que os militares tomassem as rédeas de uma nação desgovernada mais uma vez foi verbalizado de forma mais direta durante a crise das enchentes do Rio Grande do Sul, como registrei em maio:
“As cenas de veículos quebrados e da impotência de soldados em meio às águas são compartilhadas por pessoas que se desiludiram com os militares ao longo do governo Jair Bolsonaro. O ápice da desilusão ocorreu na transição para o governo Lula, quando essas pessoas acreditaram que as Forças Armadas poderiam (e deveriam) ter feito algo para evitar o posse do petista.
A interpretação de que o famigerado artigo 142 permitiria aos militares intervir na dinâmica dos três Poderes da República foi alimentada por Bolsonaro como uma ameaça, mas também como uma garantia. Foi um jeito de Bolsonaro ganhar mesmo perdendo. Ele colocou o sistema eleitoral em dúvida enquanto articulava alternativas para permanecer no poder. Como mostraram as investigações da Polícia Federal, apenas o comandante da Marinha topou.”
Mais 40 anos?
Agora, quem aponta o dedo para os militares é a parte da população que nunca deixou de desconfiar das Forças Armadas, os brasileiros que nunca quiseram saber de anistia — e repetem o bordão contra os condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023 — e que celebraram a Comissão da Verdade.
E pouco importa se as intenções dos militares eram boas, se o perdão do Supremo Tribunal Federal (STF) a Lula é altamente questionável ou se justificam-se as desconfianças em relação à forma como os inquéritos sobre a tentativa de golpe de Estado são conduzidos por Alexandre de Moraes.
Os militares indiciados pela PF por tentativa de golpe de Estado referendaram tudo o que seus críticos disseram nos últimos 40 anos. E é de se imaginar que sejam necessárias ao menos outras quatro décadas de discrição para fazer a maior parte dos brasileiros esquecer de novo.
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