Se estivesse vivo, pressupondo que realmente esteja morto, Dalton Trevisan, o “vampiro de Curitiba”, teria feito 100 anos no último sábado. Morreu no ano passado, aos 99, só pra contrariar, como se morrer fosse mais uma de suas provocações.

Avesso às pompas e às circunstâncias do mundinho literário, hostil ao vai e vem e ao ramerrame das modas editoriais, não se deixou comover pelos prêmios e homenagens. Não participou – nem tomou conhecimento – de mídias sociais, booktubers, livros para adulto colorir, textos para o Google ler.

Enfurnado em uma caverna no centro de Curitiba, ocupou-se de ler, de ler muito, e de escrever outro tanto. De lá produziu alguns dos melhores (e mais desconfortáveis) contos da literatura contemporânea. Atento, não quis virar grife, ou fazer da esquisitice a propaganda da ficção. Foi escritor do começo ao fim.

Mas um escritor é, antes e sobretudo, um leitor. Obcecado pelo russo Anton Tchekhov e pelo brasileiro Machado de Assis, ávido pelas memórias de Pedro Nava e birrento com as estripulias de Guimarães Rosa, teve outro autor como um de seus prediletos: Deus. Ou o ghost writer assim conhecido que, segundo nas Escrituras consta, inspirou profetas, reis e apóstolos a escrever cada um daqueles livros.

Ateu convicto, leu também convicto os Evangelhos. Pra se desafiar? Pra desafiar Alguém? Pra ser respondido? Pra ouvir o próprio eco? Ninguém sabe. Nem ele sabia. O que se sabe, nas dezenas de volumes que deixou, foi que, de um jeito muito seu, evitou o moralismo.

Não que tenha evitado a moral, mas sim o moralismo dos inquisidores, o dedo em riste dos juízes, o punho na mesa dos promotores. Assistia à estranheza da vida com a atenção do entomologista, nunca com o interesse do cobrador do impostos. Sabia de que matéria somos feitos. Vivos ou mortos.