O negacionismo do Êxodo e o antissemitismo gourmet
Negar que os hebreus saíram do Egito não é apenas um erro histórico, para muitos é uma estratégia de atacar a legitimidade do povo judeu e seu vínculo com a Terra de Israel

O negacionismo do Êxodo bíblico, uma moda que ressurge de tempos em tempos, não costuma ser um fenômeno acadêmico neutro ou um mero erro científico.
Greta Thumberg se recusou a ver as imagens dos crimes do Hamas, mantendo a tradição do antissemitismo passivo-agressivo que costuma incluir uma cegueira seletiva em relação às tradições de Israel.
Esse viés se insere em um padrão mais amplo: o esforço sistemático para desacreditar os pilares da identidade judaica, um antissemitismo gourmet com aparente verniz intelectual.
Assim como acontece com o negacionismo do Holocausto, a ideia de que o Êxodo “nunca aconteceu” costuma servir mais a propósitos ideológicos do que ao rigor histórico.
Negar o Holocausto busca apagar o trauma recente que fundamenta boa parte da solidariedade internacional com os judeus. Negar o Êxodo ataca a origem espiritual e histórica que liga esse povo à sua terra.
Nem todo cético é antissemita, evidentemente. O debate acadêmico sobre a historicidade do Êxodo é legítimo. Mas o que se observa, com frequência, é a transformação da ausência de provas definitivas em certeza negativa.
A narrativa se baseia no fato de que, se ainda não temos registros egípcios inquestionáveis sobre Moisés, ele nunca existiu. Isso não é ciência. É uma inversão do ônus da prova.
A arqueologia do Oriente Médio está longe de ser completa e definitiva. O Sinai é vasto, inóspito e pouco escavado. Grupos nômades deixam poucos vestígios.
É nesse contexto que se insere o debate legítimo sobre a data do Êxodo.
Alguns estudiosos, apoiados na Bíblia e em eventos como a destruição de Jericó por volta de 1400 a.C., defendem uma saída do Egito no século XV a.C., durante o reinado de Tutemés III ou Amenófis II.
Outros, baseando-se na referência à cidade de Ramessés em Êxodo 1,11 e em documentos como a Estela de Merneptá, preferem situar o Êxodo no século XIII a.C., durante os reinados de Ramessés II ou Merneptá.
Ambas as propostas encontram apoio em evidências arqueológicas e textuais, e nenhuma delas pode ser descartada sumariamente.
Mesmo assim, já temos um corpo de evidências significativo que aponta para a plausibilidade histórica do Êxodo.
Em Avaris, no delta do Nilo, arqueólogos descobriram ruínas de uma grande população semita vivendo no Egito com práticas culturais distintas do povo local: casas no estilo cananeu, ausência de ossos de porco, túmulos não egípcios.
Essa cidade coincide com a Pi-Ramessés mencionada na Bíblia como ponto de partida da fuga hebraica.
O Papiro Brooklyn, do século XVIII a.C., registra dezenas de servos com nomes semitas, entre eles “Šipra” – mesmo nome da parteira hebreia citada no livro do Êxodo.
O documento também menciona um nome que pode ser lido como “Hebreu”. Nenhuma dessas evidências é conclusiva. Mas a convergência é difícil de ignorar.
Em 1208 a.C., a Estela de Merneptá menciona “Israel” como povo já presente em Canaã, o que implica que algum tipo de entrada anterior naquela terra aconteceu.
Mais antigas ainda são as inscrições no templo de Soleb, que falam dos “Shasu de YHW”, nômades ligados a uma divindade chamada Yahweh, o Deus de Israel, e situados na mesma região onde a Bíblia localiza a revelação a Moisés.
Esses dados são reforçados por escavações que identificaram mudanças culturais no interior de Canaã, como o surgimento das chamadas casas de quatro cômodos, ausência de porco na dieta e rituais que alguns arqueólogos associam aos primeiros israelitas.
O pesquisador Richard Elliott Friedman, uma das principais autoridades em estudos bíblicos, propôs uma hipótese que concilia esses dados com o texto bíblico.
Segundo ele, quem saiu do Egito foram os levitas – uma elite religiosa com nomes egípcios, conhecimento das instituições faraônicas e memória de escravidão.
Os levitas se juntaram, segundo Friedman, às tribos cananeias, transmitindo sua experiência como fundação teológica do povo judeu. O resultado foi uma narrativa nacional que unificou diferentes origens sob um mesmo passado sagrado.
Essa hipótese explica por que os relatos do Êxodo estão concentrados nas tradições sacerdotais.
Explica por que os levitas têm nomes egípcios. Explica por que a Arca da Aliança e o Tabernáculo lembram estruturas do culto real egípcio. E explica por que, apesar da ausência de vestígios definitivos, a tradição permaneceu viva e central no judaísmo por milênios.
Estudiosos como James K. Hoffmeier e Kenneth Kitchen também defendem a plausibilidade do Êxodo com base em elementos linguísticos, culturais e administrativos que apontam para um núcleo histórico por trás da tradição.
O debate sobre o Êxodo, portanto, não é entre ciência e religião, mas entre diferentes interpretações dos mesmos dados.
Alguns estudiosos veem o Êxodo como mito literário, outros como memória coletiva de um evento real. Entre eles, há uma gama de posições intermediárias que buscam conciliar os dados arqueológicos com a tradição bíblica.
A arqueologia e a história não operam apenas com certezas absolutas. Elas trabalham com probabilidades, com indícios, com coerência interna e externa. E tudo isso existe no caso do Êxodo.
Negar o Êxodo com base na ausência de uma “prova definitiva” é repetir o erro lógico clássico: confundir falta de evidência com evidência de falta.
Esse erro, como mostrou Carl Sagan, é o terreno fértil do obscurantismo. E quando aplicado a temas judaicos, esse obscurantismo costuma ter nome e endereço conhecidos.
A arqueologia ainda tem muito a dizer. Mas quem já leu as pedras com atenção sabe: o silêncio do deserto não é uma negação. É um convite à escuta. E à honestidade.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (3)
F-35- Hellfire
12.06.2025 19:55Texto maravilhoso. Se não existem provas materiais, existem indícios materiais. A história contada de pai para filho é prova sim, a menorah esculpida no arco do triunfo de Roma conhecido como Arco de Tito tem esculpida no mesmo a Menorah do Templo, o Segundo Templo em Jerusalém, infelizmente destruido por Tito em 70 da EC.
Marco Adriano Couto Taques
12.06.2025 10:50Negar que o êxodo ocorreu, o que é fato, não tira o mérito de pertencimento dos Judeus, pois estes eram acima de todos Árabes naturais daquela região.
Gustavo Nascimento
12.06.2025 09:23O exodo não ocorreu.. mas antissemitismo é ideologia pura.. por que não teria o direito de existir..? Autodeterminação dos povos não deveria ser contestada