O Judeu atormentado do novo mundo
No fim do dia, olho para trás e desejo não mudar nada amanhã. Há uma certa valia em carregar as dores sem deixar que apaguem a esperança

Talvez haja algo misterioso, ou masoquista, em tentar entender a própria tormenta. Mas cá estou, um judeu secular sem fé e com excesso de traumas e memórias, culpas herdadas, lucidez em overdose insuportável e uma angústia existencial que não dá trégua.
Sempre me perguntei: por que diabos penso tanto? Por que antecipo – negativamente, claro – o fim de tudo? Por que até a felicidade me parece sempre provisória, como se o lobo mau estivesse logo ali? Talvez a resposta esteja no meu “DNA cultural”, se é que existe isso.
O judeu atormentado não é nem religioso, nem apátrida. Nem crente, nem cético. Apenas alguém esmagado entre a história e o vazio herdado. Um sobrevivente de guerras que não viveu, mas que sente no corpo e na alma os traumas da própria diáspora.
Quem?
Não se trata de “síndrome de Kafka” gourmetizada, mas de uma estrutura emocional transmitida por séculos. Ser judeu do tipo secular é carregar a memória do exílio, o culto à linguagem, a obsessão pela justiça e uma culpa que ninguém consegue nomear.
Não somos vítimas. Somos especialistas em sobreviver – inclusive a nós mesmos. Mas quando a sobrevivência deixa de ser material e passa a ser imaginária, entra em campo o tormento. Não um sofrimento raso, dramático. Mas um ruído de fundo constante.
A maioria dos judeus que admiro (vivos ou mortos) têm esse traço: olhar cansado, lucidez que machuca. Woody Allen, Amos Oz, Kafka. Nenhum deles carregava a leveza. Todos buscavam sentido, mas sabiam que nunca o encontrariam. Disso eu entendo.
Quando?
É claro que não somos os únicos a carregar dores ancestrais, mas há algo de exclusivo na forma como o judeu secular atual se movimenta entre o niilismo e a fé: sente falta de Deus sem acreditar em Deus. “A saudade que eu sinto de tudo que ainda não vi” (Renato Russo).
Há saídas. No meu caso, a escrita virou uma espécie de sinagoga. A constante autoanálise, minha Torá. E jogos do Galo, minha pequena gleba da Terra Prometida. Se não sou tão feliz, sou lúcido. Para um judeu com minha história, é quase um milagre.
No fim do dia, olho para trás e desejo não mudar nada amanhã. Há uma certa valia em carregar as dores sem deixar que apaguem a esperança. Porque no fundo – bem no fundo – acredito que a tão sonhada paz, um dia me chegará.
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Comentários (8)
Edmar Alves Predebon
11.05.2025 08:38Bom dia, cara Sra. Gracinha. Vai abaixo o link do site "O Fator" (obtido em consulta ao Google). https://ofator.com.br/ https://ofator.com.br/autor/ricardo-kertzman/
gracinha luder
10.05.2025 23:50Como faço para acessar o site O Fator? Eu indago porque sou uma negação em coisas de computador e o marido pior ainda. Onde eu entro para achar o site? Fico agradecida se puderem me informar. Eu amo tudo qu eo Ricardo Kertzman escreve, coloca. Abraços a todos.
Itche Vasserman
10.05.2025 20:40Lindo texto Obrigado
Joaquim Arino Durán
10.05.2025 18:29Sinto-me como os judeus.
Rosa
10.05.2025 11:38Gostei. Te entendo, só um pouco.
Luis Eduardo Rezende Caracik
10.05.2025 11:37Belíssimo texto Kertzman. Vivemos um tempo em que todos precisamos mudar a inclinação das velas de nossas naus, e ir em direção ao desconhecido. Tempos de mudanças, as quais podemos escolher entre abraçar, resistir ou influenciar com espírito de explorador e desbravador, não para os outros, mas para nós mesmos.
Renata De Paula Xavier Moro
10.05.2025 10:51Lindo!
Gilberto
10.05.2025 09:54Belo texto, Ricardo!