Gilmar Mendes usou premissas falsas para livrar José Dirceu Gilmar Mendes usou premissas falsas para livrar José Dirceu
O Antagonista

Gilmar Mendes usou premissas falsas para livrar José Dirceu

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Felipe Moura Brasil
12 minutos de leitura 31.10.2024 15:45 comentários
Análise

Gilmar Mendes usou premissas falsas para livrar José Dirceu

Um estudo de caso sobre alegações do ministro do STF

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Felipe Moura Brasil
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Gilmar Mendes usou premissas falsas para livrar José Dirceu
Foto: Antonio Augusto/STF

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, usou premissas falsas para livrar o mensaleiro petista José Dirceu, condenado por suborno no esquema do petrolão, de todas as condenações sofridas no âmbito da Lava Jato.

Do conteúdo não autenticado de mensagens roubadas por hackers em violação criminosa de aplicativo de celulares, o ministro explorou um trecho de conversa atribuída a procuradores sobre a formulação de denúncia contra a filha de Dirceu, Camila Ramos de Oliveira e Silva, para acusar “conúbio entre juiz e procuradores” que “partilhavam de um mesmo objetivo político-partidário e que usaram prerrogativas dos seus cargos para alcançá-los”.

Gilmar, no entanto, omitiu de sua decisão de 28 de outubro que o então juiz Sergio Moro rejeitou a denúncia contra a filha de Dirceu, feita por procuradores do Ministério Público Federal. Ela só viria a ser aceita – o que também é omitido pelo ministro – pela 8a Turma do TRF-4, tribunal de segunda instância revisor da Lava Jato, após recurso do MPF contra a decisão de Moro.

Premissas

“Leio que uma das provas do ‘conluio’ seria a formulação de denúncia pelo MPF contra a filha de José Dirceu para pressioná-lo. No entanto, omite-se, na decisão, que a denúncia contra a filha foi por mim rejeitada. O MP teve que recorrer ao TRF-4. A anulação [nem] sequer se sustenta em suas próprias premissas”, comentou o atual senador Moro no X, na quarta-feira, 30.

Na ocasião, o TRF-4 determinou que a ação penal deveria tramitar e ser julgada, mas Moro deixou a 13ª Vara Federal de Curitiba antes do julgamento do mérito. Dirceu, aliás, nunca foi citado em mensagens atribuídas ao ex-juiz.

Eu, Felipe, acrescento que até o advogado do petista, Roberto Podval, mencionou a decisão de primeira instância ao criticar a de segunda.

“O próprio juiz Sergio Moro, que teve contato com o processo, entendeu que ela [Camila] não teve nenhuma participação. Usaram [os desembargadores] a teoria da ‘cegueira deliberada’, de que ela fez vista grossa ou ‘não viu porque não quis’ que o dinheiro era ilícito. Isso não pode valer para uma filha, é inviável. Para uma jovem, pai é pai, é ídolo e herói”, afirmou Podval em 1 de junho de 2016.

Dinheiro ilícito

O dinheiro, pois, era ilícito, ficando a discussão jurídica em torno de outros pontos, por exemplo: se seria ou não necessário o envolvimento da filha de Dirceu no esquema antecedente para que ela fosse julgada por lavagem de dinheiro; qual era o grau de conhecimento dela sobre a origem ilícita dos recursos; se haveria ou não elementos suficientes para caracterizar a lavagem e para que a denúncia fosse recebida; e se eventual condenação posterior dependeria de provas do referido conhecimento da origem.

Naquele caso, Daniella Leopoldo e Silva Facchinil foi acusada de lavagem de dinheiro por dissimular e ocultar a origem, movimentação, disposição e propriedade de quase R$ 2 milhões provenientes da Engevix e outras empresas envolvidas na Lava Jato. Os valores teriam sido repassados a ela como contraprestação por seus serviços de arquiteta na reforma da casa de Dirceu em Vinhedo (SP).

Camila foi acusada de lavagem de dinheiro por ter tido um imóvel comprado em seu nome, no valor de R$ 750 mil, também com recursos resultantes de propinas pagas por empresas que prestavam serviços à Petrobras.

Denúncias estranhas ao esquema

Moro entendeu que as denunciadas seriam estranhas ao esquema criminoso da Petrobras, não tendo agido com dolo. O MPF argumentou que o dolo deveria ser comprovado no decorrer da instrução processual, sendo a conduta de ambas suficiente para caracterizar o delito.

O relator do caso no TRF-4, desembargador federal João Pedro Gebran Neto, concordou com os procuradores: “ainda que Camila e Daniella não tenham qualquer envolvimento com os delitos antecedentes e com o esquema criminoso envolvendo a Petrobras, tal constatação não é óbice para os envolvimentos na lavagem dos recursos ilícitos”.

A omissão da interpretação da 8ª Turma do TRF-4 na decisão de Gilmar é providencial, porque o ministro tentou emplacar a narrativa de que os procuradores forçaram a barra para denunciar a filha de Dirceu.

Mensagens roubadas

Gilmar ainda abordou o conteúdo não autenticado de mensagens roubadas por meio de “reportagem” da Carta Capital sobre esse conteúdo. Em 17 de março de 2016, eu, Felipe, mostrei que Lula pauta o editor da revista, quando pincei trecho de uma conversa obtida legalmente, na qual o então ex-presidente conta que falou “com o Mino Carta aqui, para ele escrever um artigo” sobre a manifestação anticorrupção que tomava as ruas do país.

A narrativa de Lula plantada na revista amiga era de que havia uma “negação política” que resultaria em autoritarismo, a mesma narrativa que Gilmar ecoou com base na mesma revista, para ilustrar, nas palavras do ministro, “abusos cometidos pela força-tarefa”.

Analiso abaixo como Gilmar fez isso:

“Reportagem da revista Carta Capital, de 16.01.2024, detalhou os bastidores dos preparativos da força-tarefa da Lava Jato para apresentar uma denúncia contra a filha de José Dirceu.

Mensagens enviadas no grupo de Telegram dos membros da força-tarefa em 30.8.2015 indicam que os procuradores articularam a acusação contra Camila Ramos como instrumento para exercer pressão psicológica sobre seu pai.

Nelas, os procuradores admitem que não há provas de que a investigada sabia da origem dos recursos, mas insistem na iniciativa para ‘fazer uma pressão danada’, já que ‘o homem vai ficar puto!’”.

Síntese enganosa

Ao alegar que “os procuradores admitem que não há provas de que a investigada sabia da origem dos recursos, mas insistem na iniciativa”, Gilmar apela a uma síntese enganosa, passando a impressão de que, sob todas as perspectivas possíveis, não haveria prova capaz de embasar denúncia a não ser para fins de pressão, quando, na verdade, a conversa citada aponta comprovante de dinheiro ilícito em benefício da filha de Dirceu, o que o TRF-4 veio a considerar o bastante para abrir a ação penal.

Simbolizada pelo acréscimo artificial da preposição “para” (usada duas vezes) e da expressão “já que”, a finalidade atribuída por Gilmar à iniciativa dos procuradores é uma ilação que distorce o conteúdo não autenticado das mensagens roubadas.

No trecho reproduzido pelo ministro, os alegados procuradores, em pleno exercício de suas atribuições, discutem em grupo a formulação de denúncia com base no referido comprovante. É natural que, como qualquer profissional ao debater com colegas o teor de uma obra conjunta, eles teçam considerações sobre seus possíveis efeitos, como a irritação de alguém ou o aumento da pressão. Transformar essas considerações informais de bastidor em confissões de objetivos finais, como se não houvesse outra base relevante para a obra, é manipulação de linguagem que começou na imprensa amiga e terminou em decisão judicial.

Nada mais comum

(Nada mais comum, por exemplo, que jornalistas comentarem nos bastidores qual político, partido ou militância vai se irritar com determinada notícia ou análise, ou como elas aumentarão a pressão em relação a algum caso específico – o que não quer dizer que as notícias e análises sejam levadas ao ar por causa disso e não pela relevância dos fatos a serem expostos, interpretados e depois discutidos pela sociedade e pelas autoridades competentes, ainda que haja divergências entre elas.)

Eis o trecho da conversa citada:

“23:29:52 Roberson – O que acham de denunciarmos a filha do JD [José Dirceu] por lavagem?

23:30:12 Roberson – Acabei de achar comprovante cabal que ela recebeu por fora do MILTON 250 paus.
(…)

23:31:48 Roberson – A camila fez escritura de compra e venda por R$ 500 mil, mas recebeu R$ 750.

23:32:16 Roberson – Milton e Luiz Eduardo tb ocultaram nos depos os R$ 250 de brinde.

23:32:44 Orlando – E foi em benefício dela. Ouvi-la na condição de investigada fará uma pressão danada.

23:32:52 Roberson – Detalhe que o imovel que o Milton comprou dela não valia R$ 500 e tinha clausula de inalienabilidade.

23:33:16 Orlando – Ela foi a beneficiada da lavagem.

23:33:36 Roberson – Sim, mas com plena consciência.

23:34:00 Roberson – O homem vai ficar puto!

23:34:12 Deltan – Paus nela.

23:34:24 Roberson – É casada.

23:34:28 Roberson – rsrsrs.

23:34:40 Roberson – Mas a o CF diz que não importa.

23:35:32 Deltan – Ela ajudou a esconder dinheiro de crime.

23:35:36 Deltan – Resta discutir se sabia que vinha de crime

23:37:48 Roberson – Essa prova do conhecimento específico já será mais complicada. Mas brinde ela sabia que não era. Sabia que o pai era mensaleiro.

05:54:39 Deltan – Não precisa específico. Genérico tá bom. Embora esse seu argumento corte pros dois lados, acho que dá também”.

Comentários descritivos

Nenhum dos interlocutores, portanto, fala em denunciar a filha de Dirceu “para” fazer uma pressão danada ou “já que” ele vai ficar puto. Esses são comentários descritivos sobre os efeitos do eventual depoimento e da denúncia: “fará uma pressão danada”, “vai ficar puto”. Eles falam, sim, em denunciar Camila porque existe “comprovante cabal” de que ela “recebeu por fora” 250 mil reais; “de brinde”; “em benefício dela”; porque “foi a beneficiada da lavagem”; porque “ajudou a esconder dinheiro de crime”.

“Roberson”, aparentemente, avalia que ela tinha “plena consciência”; que “sabia que o pai era mensaleiro”; que, embora a prova do conhecimento específico seja “mais complicada”, “brinde ela sabia que não era”; e que a Constituição Federal “diz que não importa”. Eles parecem ter concluído (“não precisa específico, genérico tá bom”) que tinham material suficiente para a denúncia, mesmo que, para torná-la ainda mais robusta, restasse provar o grau de consciência de Camila sobre a origem ilícita (o que, em tese, ainda poderiam tentar fazer). Os fatos subsequentes, como vimos, corroboram essa conclusão.

Plantar dúvida para colher anulações, no entanto, é um método utilizado por Gilmar desde 2020, pelo menos, quando ele suspendeu a ação penal da Operação E$quema S, desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro que atingiu o advogado Caio Asfor Rocha, sobrinho da esposa do ministro do STF. Na ocasião, Gilmar contrariou parecer da Procuradoria-Geral da República (como mostrei na matéria “Cai o tráfico, fica a influência”), assim como fez agora, no caso de Dirceu.

Descaramento

De um caso a outro, o que aumentou foi o descaramento do ministro (e de seu sucessor no mesmo método, Dias Toffoli, como também mostrei na Crusoé) no uso de piruetas retóricas em decisões monocráticas que garantem a impunidade geral.

A Folha de S. Paulo, que ajudou a legitimar ilações sobre conteúdo não autenticado de mensagens roubadas, limitou-se a criticar o caráter monocrático da decisão, “que contribui para erodir sua credibilidade [do STF] e alimentar a polarização política”. Na verdade, ela contribui para que o Brasil continue sendo o paraíso dos corruptos.

Em análise técnica ignorada por Gilmar, o atual PGR, Paulo Gonet, mostrou que os pedidos em favor de Lula e Dirceu “são visivelmente distintos”, que a jurisprudência do STF manda indeferir pedido de extensão de decisão nesses casos, e que nem “corréus” eles eram.

“Um direito”

O ministro alegou, depois, que “é um direito nosso decidir contra os pareceres da Procuradoria, apesar das relações muito afáveis, cordiais e fraterna que temos com o atual procurador-geral”. Se fosse Moro a se referir assim a Dallagnol, na época da Lava Jato, seria mais um “indício” de “conúbio”. Gilmar, além de ex-sócio de Gonet, é o padrinho de sua indicação política para a PGR, tendo feito campanha junto a Lula para conquistá-la, entre outras campanhas para emplacar aliados em tribunais, como vem noticiando a imprensa.

Nenhuma divergência pontual com qualquer afilhado anula o fato de que o ministro do STF acusa desafetos do projeto permanente de (maior) poder que, notoriamente, ele tem. Gilmar usa até psicologia barata e anacrônica para adivinhar o que “nutriam” e “pretendiam” juiz e procurador na época da Lava Jato, muito antes que a força-tarefa fosse desmantelada pelo Supremo e ambos decidissem seguir carreira política.

O mesmo Gilmar que, antes de a Lava Jato atingir seu círculo íntimo, incluindo o tucano Aécio Neves, apontava o “modelo de governança corrupta” da “cleptocracia” petista, com seus “donos da Petrobras”, contribui agora para a vitimização do PT como “o principal alvo dessa estratégia” de “injetar” um “sentimento de insatisfação” com a “classe política”. O mesmo Gilmar que acusava falsamente o colega Luis Roberto Barroso de ter soltado Dirceu agora livra Dirceu, tendo ainda ajudado duas vezes a soltá-lo, com votos na Segunda Turma.

“Nosso aliado”

O mesmo Gilmar que o petista Wadih Damous passou a chamar de “nosso aliado” no começo de 2018 baseia agora sua decisão em narrativa de revista pautada por Lula. O mesmo Gilmar que admitiu ter feito uma “leitura política” ao mudar seu voto de 2016 e votar em 2019 contra a prisão em segunda instância, sendo decisivo para tirar Lula da cadeia, agora faz uma escrita política para que Dirceu nunca mais seja preso.

Sua nova decisão panfletária, carregada de teorias da conspiração baseadas em falsas premissas, só confirma, pela enésima vez, que o problema do sistema com a força-tarefa nunca foi sobre os métodos, mas sobre os alvos. Ou nas palavras do antigo Gilmar: “A Lava Jato estragou tudo. Evidente que a Lava Jato não estava nos planos porque o plano era perfeito, mas não combinaram com os russos”.

Está tudo combinado agora?

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