Gilmar atribui à Lava Jato práticas adotadas pelo STF com Cid e Lessa
Ministro do Supremo requentou em Harvard velhas narrativas e omissões sobre “exageros” da força-tarefa, em evento patrocinado pelo banco de um empresário que ele blindou. Entenda a verdadeira história não contada

Gilmar Mendes voltou a atribuir à Operação Lava Jato, no domingo, 13 de abril, práticas adotadas pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) após a extinção da força-tarefa de Curitiba.
Durante a Brazil Conference 2025, evento em Harvard que agora tem patrocínio do BTG e palestra do dono do banco, André Esteves, blindado contra a operação pelo ministro do STF, Gilmar requentou suas velhas narrativas e omissões sobre o que já havia chamado de “coisa de pervertidos”:
“Eu percebi que havia exageros, que nós estávamos mantendo as prisões preventivas e só estávamos fazendo as libertações depois que faziam delações.”
O problema de fabricar alegações para encobrir motivações inconfessáveis é a dificuldade de fazer as primeiras pararem de pé e de se manter a coerência em relação a elas ao longo do tempo.
Gilmar nunca conta, mas o STF procedeu com a homologação do acordo de colaboração premiada de presos, tanto no caso do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, quanto no caso do miliciano e matador de aluguel Ronnie Lessa, executor do assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
O caso de Mauro Cid
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, homologou em 9 de setembro de 2023 a delação de Mauro Cid, que estava preso desde 3 de maio daquele ano em razão da investigação sobre inserções de dados falsos em cartões de vacina contra a Covid-19.
Na decisão, Moraes concedeu a Cid liberdade provisória, apontando “a desnecessidade da manutenção da prisão preventiva, pois não mais se mantém presente qualquer das hipóteses excepcionais e razoavelmente previstas na legislação que admitem a relativização da liberdade de ir e vir para fins de investigação criminal”. O colega de Gilmar impôs uma série de medidas cautelares ao tenente-coronel.
Em um dos depoimentos de Mauro Cid, como depois se descobriu em vídeo, Moraes chegou a ameaçar o colaborador com a retomada de investigações sobre sua família caso omitisse informações relevantes, o que jamais foi feito por qualquer juiz da Lava Jato.
O caso de Ronnie Lessa
Moraes ainda homologou, em 19 de março de 2024, a delação de Ronnie Lessa, preso preventivamente desde 12 de março de 2019 junto com o ex-PM Élcio Queiroz, que confessou ter dirigido o carro usado no crime cometido um ano antes, em 14 de março de 2018. O STF informou que Lessa havia participado de audiência em 18 de março de 2024, na qual “foi constatada a voluntariedade da manifestação da vontade dele”. A rigor, Lessa inicialmente não queria delatar, mas se viu encurralado porque Queiroz fechou colaboração premiada primeiro.
Em razão da gravidade do crime, a delação não garantiu a soltura, mas ajudou a reduzir em cerca de 13 anos a pena de ambos em regime fechado. Como detalhou O Globo em 2 de novembro de 2024, quando foram condenados:
“A sentença exata de Lessa foi de 78 anos, 9 meses e 30 dias, e a de Queiroz, 59 anos, 8 meses e 10 dias. A progressão do regime da prisão é feita sobre o tempo total da condenação, e começa com o regime fechado, até progredir para o semiaberto, aberto e, por fim, a liberdade condicional.
Como assassinato é um crime hediondo, e os dois são réus primários, a mudança para o semiaberto se daria, se eles não tivessem feito o acordo de delação premiada, após cumprirem 40% do tempo da sentença — no caso de Lessa, o percentual corresponderia a 31 anos em regime fechado, e de Queiroz, a 26 anos. Um dos benefícios da colaboração foi a redução do tempo de regime fechado para 18 e 12 anos, respectivamente.”
Como ambos já estavam presos havia cinco anos, Élcio Queiroz poderia deixar a cadeia em dezembro de 2031, enquanto Ronnie Lessa iria para o regime semiaberto em 2037 e ficaria livre em 2039.
A comparação com a Lava Jato
Na Lava Jato, ao contrário do que sugere Gilmar, a imensa maioria das colaborações premiadas foi fechada com investigados soltos, como os empresários Joesley Batista e Emílio Odebrecht, depois contemplados por decisões de Dias Toffoli, ministro chamado de “amigo do amigo do meu pai” na Odebrecht e cuja esposa, a advogada Roberta Rangel, tem os irmãos Batista como clientes.
As manobras usadas no STF para plantar “dúvida razoável” sobre a voluntariedade dessas delações foram expostas e esmiuçadas em minha matéria de capa da Crusoé intitulada “A história das fake news contra a Transparência Internacional”. Mas basta assistir ao trecho do depoimento em que Emílio Odebrecht dá gargalhadas, ao relatar como os petistas passaram de jacarés a crocodilos em exigência de propinas, para atestar o ridículo da hipótese de “tortura”.
Ademais, foi a ministra Cármen Lúcia, do STF, que, em janeiro de 2017, homologou as 77 delações de executivos e ex-executivos da Odebrecht, incluindo a de Marcelo Odebrecht, que — este, sim — estava preso preventivamente.
A própria Segunda Turma do STF havia mantido a prisão preventiva do empresário por entender que Marcelo Odebrecht tentou obstruir as investigações e destruir provas no curso da investigação da Lava Jato. A decisão foi tomada em 26 de abril de 2016, com votos de Cármen Lúcia, Teori Zavascki e Celso de Mello.
Mais curioso ainda: o atual PGR Paulo Gonet, ex-sócio de Gilmar e na época subprocurador-geral da República, sustentou naquela sessão que houve ordens para eliminação de provas.
Gonet corroborou a existência de “um esquema que, como dito na primeira instância, se reproduz em outras estatais, com interferência na coleta de provas, além da destruição de provas no exterior”. “Os personagens enfatizam os elementos de risco à aplicação do direito penal e às investigações criminais que ainda estão em curso”, disse Gonet.
O parecer da PGR explicou que as provas dos autos apontam que Marcelo Odebrecht continuou praticando graves crimes, mesmo após o início das investigações e ações penais: “há indicativos bem seguros de que o paciente, por mensagens cifradas, determinou sim a destruição de provas, revelando que não tem limites para garantir a impunidade de seus gravíssimos atos criminosos e de todos aqueles que o cercavam e o assessoravam”.
Paulo Gonet também participou da Brazil Conference 2015, mas não ousou, claro, rebater o ex-sócio, mencionando esses fatos históricos.
Outros fatos históricos omitidos por Gilmar
O miliciano Ronnie Lessa, em sua colaboração premiada, apontou os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, ex-deputados estaduais do Rio de Janeiro, como mandantes do assassinato de Marielle Franco.
Chiquinho Brazão era vereador do Rio na mesma legislatura que a vítima. Havia sido eleito em 2016 para o sexto mandato consecutivo na Câmara Municipal. Em 2022, quatro anos após o duplo homicídio, foi eleito deputado federal, o que levaria o caso ao STF em razão de seu foro privilegiado.
Domingos Brazão, que entrou em 1999 e teve cinco mandatos na Assembleia Legislativa do Rio, só saiu de lá em 2015, quando foi eleito pela maioria de seus pares da Alerj para o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado.
Gilmar Mendes não conta, mas Domingos Brazão chegou a ser preso pela Lava Jato, junto a quatro outros conselheiros, no âmbito de investigação de fraude e corrupção no tribunal, em 29 de março de 2017, um ano antes dos assassinatos de Marielle e Anderson. A Operação Quinto do Ouro se baseou na delação premiada do ex-presidente do TCE-RJ Jonas Lopes e também atingiu o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Alerj Jorge Picciani.
Os conselheiros foram acusados de receber propinas em troca de vista grossa sobre desvios em obras fluminenses. As vantagens indevidas incluíam uma mesada de 70 mil reais para cada um, alegadamente paga pela Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado (Fetranspor), que reúne as principais entidades patronais do setor de transporte no Rio de Janeiro. As prisões temporárias, no entanto, foram derrubadas no Superior Tribunal de Justiça, como se pode ler com mais detalhes no meu texto: “Impunidade na Lava Jato deixou Brazão livre para mandar matar Marielle?”.
Curiosamente, a Fetranspor era representada pelo escritório de Sérgio Bermudes, integrado pela esposa de Gilmar, Guiomar Mendes, sobretudo no âmbito da Operação Ponto Final. Por esse e vários outros motivos, em 21 de agosto de 2017, o então procurador-geral da República Rodrigo Janot, a pedido dos procuradores da Lava Jato, suscitou à então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, duas arguições de impedimento, suspeição e incompatibilidade de Gilmar, relator dos HC 146.666/RJ e 146.813/RJ, respectivamente dos empresários Jacob Barata Filho, “o Rei do Ônibus”, e Lélis Marcos Teixeira, ex-presidente da Fetranspor.
“O fato de Barata Filho e Lélis Teixeira serem clientes do escritório de advocacia em que trabalha a esposa de Gilmar Mendes o torna suspeito/incompatível para atuar como magistrado no caso, principalmente na condição de relator de HC. Por serem clientes, Barata Filho e Lélis Teixeira se tornam devedores da esposa do ministro do STF, ainda que indiretamente, pois ela possui evidentemente participação nos lucros da sociedade advocatícia”, constatou o Ministério Público Federal.
Além disso, Gilmar havia sido padrinho em 2013 do casamento da filha de Jacob, Beatriz Barata, com Francisco Feitosa Filho, sobrinho da esposa do ministro do STF, madrinha na mesma cerimônia. O noivo era filho de Francisco Feitosa de Albuquerque Lima, irmão de Guiomar Mendes e, portanto, cunhado de Gilmar que mantinha não só ligações sociais, mas também comerciais com Jacob Barata Filho. Conversas de aplicativos mostravam o compadrio entre ambos (no contexto de um encontro em Fortaleza) em junho daquele ano, dois meses antes de Gilmar assumir a relatoria. O contato da esposa do ministro do Supremo, aliás, estava registrado na agenda telefônica de Barata Filho.
“Não resta dúvida para o MPF de que há vínculos pessoais entre a família de Gilmar Mendes e Jacob Barata Filho, circunstância também representada simbolicamente na função de padrinhos de casamento da filha do paciente. Os vínculos são atuais, ultrapassam a barreira dos laços superficiais de cordialidade e atingem a relação íntima de amizade, a exemplo do contato no telefone celular. Existem ainda vínculos na relação de sociedade entre Barata Filho e o cunhado do ministro Gilmar Mendes, bem como na atividade exercida pela esposa do magistrado. Tudo isso compromete a isenção do ministro na apreciação da causa, ou, no mínimo, abalam a crença nessa imparcialidade”, apontou a Lava Jato na arguição de suspeição, impedimento e incompatibilidade.
Gilmar, claro, deu de ombros. O ministro, que mandou várias vezes soltar Barata Filho, pinçou e minimizou um dos elementos apontados, fazendo as seguintes perguntas a jornalistas e dispensando a resposta: “Vocês acham que ser padrinho de casamento impede alguém de julgar um caso? Vocês acham que isto é relação íntima, como a lei diz? Não precisa responder.” A assessoria de imprensa de Gilmar ainda alegou que o casamento “não durou nem seis meses”.
Já duram mais de 8 anos, por outro lado, as alegações fabricadas pelo ministro para desmanchar, com “muito orgulho”, a Lava Jato. De lá para cá, sua assessoria de imprensa só aumentou.
Leia mais: O que ninguém falou na Brazil Conference sobre Gilmar, um patrocinador e Lava Jato
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Comentários (6)
ALDO FERREIRA DE MORAES ARAUJO
16.04.2025 11:07Esse senhor (um colega dele no STF já afirmou "que envergonha todos nós") acusa os outros daquilo que ele largamente pratica. É vergonhoso mesmo.
FRANCISCO
14.04.2025 21:14A lava é fichinha se comparada só STF, atacar a lava jato é um meio que o Gilmar arrumou para não ser atacado.
MARCOS
14.04.2025 19:34TUDO MUITO BEM EXPLICADINHO. RESUMO: NO BRASIL O CRIME COMPENSA PARA OS PODEROSOS.
liselotte gerke
14.04.2025 16:15Ele como ministro acredita que pode falar e fazer o que quer, mentindo mais que a boca, já que o peixe morre pela boca, hora de expor publicamente os muitos julgamentos mal feitos por ele, bem como as constantes contradições. Por que não?
Reca
14.04.2025 15:28O PSTF está composto por pessoas com valores morais duvidosos. Tanto quanto suas sentenças. Péssimo exemplo ao judiciário brasileiro .
Paulo Pinto
14.04.2025 14:55Excelente!! Admiro jornalistas que não temem os ditadores de toga.