E se o problema for o presidente?

08.07.2025

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O Antagonista

E se o problema for o presidente?

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Rodolfo Borges
23 minutos de leitura 05.07.2025 15:57 comentários
Análise

E se o problema for o presidente?

Presidencialismo de coalizão leva a culpa pela crise entre os Poderes, mas o Brasil não tem um presidente de verdade desde 2011

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Rodolfo Borges
23 minutos de leitura 05.07.2025 15:57 comentários 1
E se o problema for o presidente?
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Flávio Dino deu seu diagnóstico sobre a crise por que passam os Poderes no Brasil. Em uma longa explanação no Fórum de Lisboa, vulgo Gilmarpalooza, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que tenta tourear a crise das emendas parlamentares, apontou para o suspeito de costume: o presidencialismo de coalizão. Mas mencionou diretamente apenas um presidente.

Segue reproduzido, abaixo, o que Dino disse, com alguns comentários pontuais. Quem já sabe o que o ministro falou no Gilmarpaooza ou não se interessa pelas suas análises, pode pular direto para o tópico “E quem manda no sistema?”.

Presidencialismo de coalizão

Em meio a uma ou outra brincadeira com a plateia com a história de Dom Pedro I e Inês de Castro, para aludir à expressão “agora, Inês é morta”, Dino começou assim:

“O presidencialismo de coalizão é aquilo que ficou no lugar como mecanismo de governabilidade e de governança, inclusive orçamentária, após a superação da ditadura militar E vários cimentos foram usados para fazer essa coalizão, cimentos legais, cimentos ilegais, cargos, verbas. Em si, não são mecanismos espúrios. Aliás, eles são weberianos. Quando nós temos a necessidade de formar maiorias políticas, cargos e verbas fazem parte disso. Ocorre que a fronteira entre esses mecanismos, na dimensão legal e na dimensão ilegal, são muito tênues. E nós tivemos, ao longo do tempo, em face dessa pequena distância entre [Max] Weber e a Penitenciária da Papuda, essa confusão. E ele, o Weber, não sabia disso, coitado. Essa pequena distância faz com que nós tivéssemos uma crise do presidencialismo de coalizão no nosso país. A questão, amigos e amigas, é o que ficou no lugar. O presidencialismo de coalizão explode e, na verdade, o que mais ou menos cumpre esse papel de tentar organizar o debate político no Brasil nunca se estabilizou.”

O ministro do STF, que falava durante o painel intitulado “Governança orçamentária e democracia em regimes presidencialistas” e se disse mais político do que juiz, por ter passado mais tempo em cargos eletivos do que de toga, chamou a atenção para a falta de clareza das regras eleitorais, que mudam a toda hora:

“Nós tivemos a substituição do financiamento privado pelo financiamento público. Deu certo? Funciona bem? Isto tem ajudado a formar maiorias parlamentares qualificadas que garantam a governança e a governabilidade? Os fundos partidários eleitorais conduzem a isso?”

A internet, sempre ela

Dino também mencionou em seu diagnóstico que “nós tivemos uma explosão do centro democrático tradicional no país, sem o qual não se governa”, e não deixou de dar sua bordoada nas redes sociais:

“A internet, com uma lógica muito venenosa à democracia… A internet é um espaço de guerra e a guerra é a negação da política (…) A internet é um espaço de litigância, é um espaço de beligerância, é um espaço de extermínio. Não é o espaço da celebração da diferença, porque só monetiza assim. Se não for a litigância elevada à enésima potência, não dá dinheiro. E, por isso mesmo, nós temos estas dificuldades do presidencialismo de coalizão no nosso país.”

Tudo isso foi o preâmbulo para o ministro do STF mencionar as emendas parlamentares, mais especificamente as impositivas, que o presidente não pode mais negar aos congressistas.

“No nosso país, não existe lei-travão [norma de Portugal que impede os parlamentares de aumentar despesa ou diminuir receita fora dos limites do Orçamento]. E eu acabei virando, por esses caprichos do destino, uma espécie de juiz travão. E é um papel chato. Tem muita gente que me odeia, inclusive, mas tem muita gente que gosta. Por quê? Porque, quando eu assumo a relatoria das ações constitucionais relativas a essa temática das emendas impositivas, querido Alexandre [de Moraes], nós tínhamos uma desorganização absoluta quanto ao funcionamento do devido processo legal orçamentário”, disse Dino.

“O papel do Supremo”

Segundo o ministro do STF, “nossa lei geral de finanças públicas é a velha 4320, de [19]64” e “é preciso que alguém faça, mais ou menos, esse papel de tentar dizer onde está o trilho”.

“E, aí, vem o quinto elemento daquilo que, hoje, eu identifico como sendo, e que ficou no lugar do presidencialismo de coalizão, que é exatamente o papel do Supremo. Que é muito difícil, hoje, porque o Supremo vive uma sobrecarga enorme e crescente, e isso é contra-utópico. Uma sociedade em que todas as questões políticas, sociais, econômicas, religiosas, têm que ser arbitradas no Supremo, ela é disfuncional daquilo que ela tem de central, que é o jogo institucional”, disse Dino, resumindo seu argumento:

“Como a internet é desinstitucionalizadora, como o modelo eleitoral de financiamento no Brasil é desagregador, nós temos a necessidade de alguém decidir os problemas concretos que são postos.”

É quando surge o STF.

Autocontenção?

“O Supremo, toda hora, é demandado para decidir tudo. E nós temos dois caminhos. O primeiro: vamos matar Inês. A gente diz assim: ‘Matar Inês não é problema nosso. Isso se chama autocontenção. Alguém vai aplaudir ou depois vão dizer: ‘Olha, o Supremo omisso, prevaricador deixou Inês morrer e agora é tarde. Inês é morta’. Se a gente corre com a toga para não deixar matar Inês, Afonso não matar Inês, o que acontece? Ativismo, ditadores, usurpação, invasão, impeachment e assim sucessivamente. Então, é uma escolha complexa, no momento em que, evidentemente, a vocação do Supremo é para arbitramento ad hoc, caso a caso. Quem prospecta e constrói, pactua o futuro, obviamente, é a política. E o Supremo, quando trata desses temas orçamentários e financeiros, sempre vai dar uma resposta casuística, no sentido essencial da palavra. E isso, evidentemente, é insuficiente. Você só caminha até a esquina seguinte”, reconheceu o ministro.

Dino lembrou que, no curto período em que frequenta o STF, os ministros já decidiram a revisão da vida toda do INSS e o critério de correção da FGTS, sempre a seu estilo irreverente:

“Eu estava, a meu ver, quase numa sessão espírita-jurídica, porque nós estávamos discutindo Plano Cruzado, Plano Bresser, plano… A maioria [nem] sequer sabe o que é isso, dos presentes aqui. Decidimos outro dia a controvérsia sobre essas questões e, agora, bom, emendas, todas as horas. E agora nós temos esse tema das conciliações, que é outro paradoxo.”

Conciliações

Na sequência, Dino reclamou dos “articulistas no jornal” que dizem “vejam, o Supremo está fazendo o que não deve, fazendo conciliação em torno de direitos fundamentais”.

“Inventaram essa doutrina lá no Brasil, [de] que não existe conciliação sobre direitos fundamentais. Eu disse: ‘Bom, então não devia existir nem divórcio, porque é um direito fundamental’. Mas é certo, por outro lado, que não é toda hora que o Supremo deve assumir o papel de instância de coordenação de pacto político. Por quê? Porque não é bom para o Supremo e não é bom para a democracia e não é bom para a sociedade. E os juízes do Supremo não querem isto”, disse.

Ao chegar ao tema do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), cujo aumento decretado pelo governo Lula (foto) o Congresso Nacional derrubou, Dino disse que “essa controvérsia não tem nada de profundo juridicamente, pelo contrário, ela é rasa, ela é simplória, é silogismo aristotélico, premissa, conclusão, mas se transformou num tema constitucional de altíssima indagação, pelos fatores que abstratamente não cabem ao Supremo”.

Dino disse ainda que “do ponto de vista jurídico, não tem mais do que cinco minutos de debate”, sem detalhar por que a questão seria rasa. Mas o fato é que, no dia seguinte a essa palestra, seu colega Alexandre de Moraes suspendeu todos os atos sobre o IOF, tanto o do governo, no qual teria ocorrido desvio de função, quanto o do Congresso, questionado por alegadamente não poder derrubar um decreto presidencial, e chamou uma conciliação entre os dois poderes.

Lei mais: Moraes reclama de críticos de ativismo, mas faz pirueta por “audiência de conciliação”

Foi exatamente o que Dino indicou que ocorreria, apesar de dizer que estava apenas especulando:

“E qual é a saída institucional? Ou o Supremo diz ‘vamos fazer a adjudicação, aplicar a lei ao caso concreto, seu papel tradicional, ou o Supremo vai fazer o quê? Política. Chamar uma audiência de conciliação, para conciliar aqueles que deveriam se conciliar pelos seus próprios meios, pelos seus próprios caminhos. Então, esses são os impasses, pelos quais eu não sei exatamente o que vai acontecer. Eu estou especulando. Eu não sei também o que o Alexandre vai decidir e também não sei como vou votar. Claro, eu sei como eu vou votar. Eu estou apenas brincando aqui com vocês, mas eu tenho que dizer isso, não é, obrigatório, senão o Gilmar [Mendes] briga comigo.”

Emendas

Na sequência, Dino abordou a crise das emendas parlamentares, mediada por ele, que é enxergado no Congresso mais como um aliado do Palácio do Planalto nessa história do que como um árbitro isento.

“Agora, exatamente por conta desse itinerário institucional, nós temos essas dificuldades a que fiz alusão, que transforma o cenário de governança orçamentária hoje no Brasil, submetido a um problema jurídico clássico, tradicional, que é o problema do juízo de proporcionalidade ou de concordância prática, que é a última incompreensão. Quando nós tratamos de um tema orçamentário, emendas impositivas ou responsabilidade fiscal, é claro que há dissensos sobre isto. É claro que há regras aparentemente conflitantes. Por exemplo, quando se fala em responsabilidade fiscal, há pessoas que olham mais para a coluna da receita, há pessoas que olham mais para a coluna da despesa. E, ínsito a isso, tanto num caso como no outro, há conflitos federativos e distributivos históricos no país. Isso é normal no regime democrático. Não pode haver escamoteamento, é preciso que haja franqueza para entender que, por baixo do consenso retórico. há essas disputas”, disse o ministro do STF, que era ministro da Justiça de Lula até outro dia.

Segundo Dino, diante de tudo isso, “se produz a seguinte incompreensão”:

“O Supremo, sobrecarregado por essa carência institucional [a] que fiz alusão, ao decidir, é visto como uma instância que está se politizando, ou para um lado ou para o outro, porque esperam do Supremo que ele faça o que ele não deve fazer, que é exatamente absolutizar um único artigo da Constituição. Isso não existe na política, e no tribunal constitucional, jamais. Então, quando nós tratamos de responsabilidade fiscal, de emendas impositivas, nós temos um devido processo orçamentário regrado na Constituição e nós não podemos, a estas alturas, abrir mão daquilo que é uma identidade do papel do direito, que é exatamente garantir o Estado de direito, garantir aquilo que está no artigo 1554 da Constituição, segundo o qual ninguém será privado da liberdade de seus bens sem o devido processo legal. Mas nós temos também duas opções do Congresso Nacional, e esse é o drama da hora presente e que deve ser agendado no mundo do direito com muita clareza. Ora, nós temos responsabilidade fiscal, devido processo orçamentário, emendas parlamentares impositivas que chegam, hoje, a 20%, 25% das despesas discricionárias da União. Certamente, nem na Grécia, nem em qualquer idioma, aramaico, sânscrito, vai se encontrar essa alusão. Nós temos um sistema jurídico, hoje, constitucional, singular no concerto das nações, porque isto convive com o presidencialismo e a forma federativa de Estado. E esse é o drama que o mundo do direito deve, a frio, responder. Esses conceitos que estão assentados na Constituição são compatíveis com o presidencialismo? O Brasil deve abrir mão do presidencialismo?”, questionou o ministro.

Dino destacou que houve dois plebiscitos no Brasil sobre o assunto, em 1963 e em 1993.

“Em ambos os casos, a sociedade brasileira, por larga maioria, optou pelo presidencialismo. O presidencialismo, o de coalizão, ruiu. Este presidencialismo que nós temos hoje é factível com as atuais regras que a política exige para a execução orçamentária? E, finalmente, num país grande como o nosso, a opção quase que natural é a forma federativa de Estado. E a forma federativa de Estado, como todos sabemos, ela se conforma a partir da estruturação de dois conjuntos. O primeiro, regras de competência. Então, as regras de competência estão lá, no 21, no 22, no 23, no 24 da Constituição, e, lá no fim, regras de federalismo fiscal. Então, existem os tributos federais, os estaduais, municipais e os fundos de participação. Essa é a lógica. Ora, no momento em que você pega despesas, recursos da União, arrecadação tributária da União, e descentraliza muito fortemente pela via das emendas parlamentares, você, num certo sentido, está sabotando a repartição constitucional de competências materiais, porque você está desprovendo tais competências, deveres, e está descentralizando de modo a que, por exemplo, teoricamente, no caso brasileiro, um recurso da União deve custear uma ferrovia, deve custear uma obra dita estruturante, um banco de projetos que abrange os modais de transporte, geração de energia. Ora, se os recursos discricionários que constitucionalmente devem ser alocados nisso se transformam em mecanismos de descentralização e desconcentração para obras igualmente justas, igualmente importantes, porém, com caráter diferente, que são as obras de caráter local…”, seguiu.

“Não contem com o Supremo prevaricador e absenteísta”

O ministro o STF finalizou sua explanação dizendo que os problemas provenientes da desestruturação do presidencialismo de coalizão “fizeram com que nós tenhamos regras orçamentárias que não se compatibilizam adequadamente, na minha perspectiva, com o presidencialismo e a forma federativa de Estado”.

“A saída pode ser ou mudar as primeiras ou mudar o presidencialismo e a forma federativa de Estado. Mas isso tem que ser enfrentado, sob pena de nós não conseguirmos dissipar esse pessimismo, essa subjetividade que faz com que nós tenhamos dificuldades crescentes de alavancar a economia brasileira e a sua dimensão social”, disse, acrescentando que “isso é tão grave que não deve ser decidido só pelo Supremo”.

“E esse é o ponto principal, que eu vim aqui tranquilizar a todos: no Supremo, há pessoas de todos os tipos, origens, pensamentos, como deve ser um tribunal num país democrático. Mas eu não conheço ninguém que esteja feliz com essa ideia da hiperjudicialização dos conflitos políticos, econômicos e sociais. Afirmo a vocês que não há essa perspectiva, porque nós sabemos que Inês, volto a ela, é tão importante que não deve ser só a toga, muito menos uma toga solipsista, individualista, a poder salvá-la. Agora, não contem também com o Supremo prevaricador e absenteísta que diga assim: ‘Não, isso não é comigo, porque esse outro extremo seria também, num certo sentido, uma renúncia a um dever e seria, num certo sentido, uma traição aos deveres de um juiz constitucional'”, finalizou, fazendo mais alusões lúdicas à história de Inês de Castro.

Apocalipse

Ao ser questionado sobre o fato de que o STF considerou constitucionais as emendas impositivas quando elas foram criadas, Dino disse que “é um uma dificuldade adicional para o Supremo essa tua lembrança, de que se cuida de emendas constitucionais”.

“Por mais que eu tenha simpatia por um controle de constitucionalidade forte, e não é uma simpatia gratuita ou corporativista, eu fui mais tempo político do que juiz, eu fui político [por] 18 anos, sou juiz, somando tudo, 13… Então, não é corporativismo judicial, é uma necessidade do nosso tempo. Controle de constitucionalidade forte está em debate hoje nos Estados Unidos da América, constitucionalismo abusivo, ou seja, maiorias ocasionais que pretendem passar por cima do plexo de valores perenes, é uma tendência do nosso tempo. Porém, aí vem o porém, certamente não é simples para o Supremo declarar inconstitucional uma emenda constitucional. E esse, exatamente, é o nosso desafio. Tem base doutrinária, tem as cláusulas pétreas, etc. Mas, institucionalmente, tem um custo elevado, que faz com que hoje, o que nós fazemos lá, é procurar afirmar os conceitos de transparência e registrabilidade, para poder, exatamente, quem sabe com isto, levar a um processo mais amplo de debate social e em que, aí, a sociedade, com seus representantes eleitos, vá chegando a uma solução”, comentou Dino, preparando-se para comentar o dia em que o STF julgará a impositividade das emendas, que descreveu como um cenário apocalíptico.

“Eu não marquei… Assim, eu sou cristão, vocês sabem. E, portanto, acredito que, em algum momento, haverá o apocalipse. Mas eu não marquei ainda a data, ou seja, eu não sei, lá, no Supremo, [em] que dia que nós vamos julgar a tal da impositividade. Porque seria, do ponto de vista institucional, hoje, seria uma coisa meio apocalíptica. Porque é quase um ‘control, alt, del’ [um reset] no sistema político brasileiro. E eu não sei exatamente, depois do apocalipse, o que fica. Eu creio que é o Reino, mas, enfim, nós precisamos ter uma abordagem, acho que processualista, progressiva, ponderada, moderada, desde que os outros atores institucionais permitam isso”, acrescentou.

“As leis de Newton”

“Lembro isso: freios e contrapesos. Se nós não queremos o apocalipse, mas se os outros quiserem, o que a gente faz? Corre para onde, do ponto de vista institucional? Qual é a lógica, hoje, no Brasil? É empurrar o diferente para o canto do ringue. E, normalmente, as pessoas não gostam de ficar no canto do ringue”, seguiu Dino, fazendo brincadeiras com o ministro aposentado do STF Nelson Jobim, lamentando a situação e prometendo reação:

“Hoje, a lógica dominante no Brasil é essa lógica do extermínio do diferente. E acho que o Supremo não deve entrar muito nessa lógica. Porém, se nos colocarem lá, o que a gente faz? Os outros têm que pensar nisso também, porque, se não nos dão saída, nós vamos ter que, de algum modo, readequar, até por imperativo físico das leis de Newton, ação e reação.”

Dino finalizou dizendo que “o dito orçamento impositivo, isso que está aí, chamado indevidamente assim, as emendas impositivas, perpassa já quatro ou cinco presidentes diferentes, e todos com muita dificuldade, cada um com a sua, mas todos com muita dificuldade”, e que “as decisões no Supremo, que são atribuídas a mim, foram por 11 a 0, por 11 magistrados indicados por cinco presidentes da República diferentes”.

E quem manda no sistema?

Fiz questão de mencionar toda a longa explanação de Dino para destacar que, apesar de ter seus méritos e ser extensa e muito eloquente — e apesar, também, de não ser exatamente original, pois a crise institucional já vem sendo abordada sob a perspectiva da falência do presidencialismo de coalizão por estudiosos do assunto há algum tempo —, ela está incompleta.

Toda essa crise do sistema foi descrita pelo ministro do STF como se não houvesse atores, com raras exceções.

“Ocorre que a primeira eleição direta no Brasil, [de] 1989, vence uma perspectiva meio bonapartista, meio cesarista, meio desinstitucionalizadora, e que resultou, todos nós sabemos, no impeachment de [19]93 e no surgimento desse artefato que viveu seu apogeu até praticamente 2018, 2020, chamado presidencialismo de coalizão”, disse Dino, no início de sua explanação, ao mencionar o governo Fernando Collor de Mello.

Àquela altura, as emendas impositivas não eram o problema.

Dino também fez menções indiretas a Jair Bolsonaro, ao falar, por exemplo, em “ditadores, usurpação, invasão”. Só não aparece, nessas horas, o nome de Luiz Inácio Lula da Silva, tido por muitos como o grande líder popular de sua época no Brasil, uma espécie de novo Getúlio Vargas.

O cientista político Carlos Pereira pôs a culpa pela crise atual em Lula, em artigo publicado no Estadão, em resposta ao que o colega Sérgio Abranches disse em entrevista ao Valor, sobre o Congresso ser disfuncional.

O sociólogo Celso Rocha de Barros também preferiu apontar o dedo para o Congresso, em artigo na Folha de S.Paulo, como fazem os lulistas em campanha aberta. Mas o buraco é bem mais embaixo.

Golpes

Os petistas se acostumaram a classificar o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe. Se for para tratar o impedimento de Dilma dessa forma, sua eleição deveria ser encarada da mesma maneira.

É possível buscar ainda mais longe os problemas atuais da República brasileira, como na mudança de regras no meio do jogo que permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso ou na ingênua perspectiva dos petistas de que seria o bastante dividir dinheiro, e não poder, no primeiro governo Lula, por meio do mensalão; mas foi na eleição artificial de Dilma que começou o descolamento profundo entre Executivo e Legislativo que culminaria no orçamento secreto sob Bolsonaro.

Lula usou, em 2010, exatamente a mesma estratégia que Vladimir Putin na Rússia. Quando ainda precisava simular alguma institucionalidade, o autocrata russo colocou Dmitri Medvedev na presidência do país, apenas para poder voltar depois e se perpetuar no poder até hoje.

A criatura de Lula, moldada politicamente para não sobreviver sozinha por muito tempo, não entendeu ou não topou encenar o espetáculo escrito pelo criador, e acabou expurgada.

STF

O governo Dilma foi tão artificial que ela nem sequer conseguiu se eleger senadora em Minas Gerais, após ter sido beneficiada por um truque que lhe permitiu permanecer elegível apesar de ter sido deposta. Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça de Lula, participou desse ardil, ao presidir, como presidente do STF, a sessão do Senado que sacramentou o impeachment de Dilma.

E chegamos assim, enfim, aos ministros do STF, aqueles que se apresentam agora para ajudar a resolver os problemas. Foram eles também que anularam as condenações de Lula na Operação Lava Jato, como fez o STF com todas as outras grandes investigações nacionais que ousaram atingir políticos relevantes.

A reabiitação judicial permitiu ao petista voltar por linhas tortas ao Palácio do Planalto, para tentar limpar a própria biografia e ele o tenta a qualquer preço, já que quem vai pagar por tudo isso, seja com IOF ou imposto sobre investimentos e blusinhas, são os contribuintes brasileiros.

Esses ministros do STF têm laços muito curtos com os presidentes que os indicaram, e disposição até demais para a política. Participam de jantares com parlamentares, dão pitacos públicos sobre processos que julgarão, fazem análises políticas, interferem em questões legislativas e têm passados que influenciam na forma como são interpretados seus votos.

Dino foi indicado por Lula, aliás, como ministro “com a cabeça política”, e o atual presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, caiu na armadilha de se posicionar publicamente contra um ex-presidente, ao dizer em público a famigerada frase “nós derrotamos o bolsonarismo”.

Presidentes fracos

É de se questionar, portanto, a capacidade desses juízes para mediar as disputas políticas e, em última instância, resolver os problemas para os quais eles contribuíram ao fazer exatamente o que agora apresentam como solução: interferir no jogo político.

O fim da reeleição surgiu, nos últimos meses, como a nova mudança milagrosa capaz de melhorar o sistema político brasileiro. Esse sistema, aliás, é alterado a cada legislatura, na esperança de se solucionar os problemas de Brasília. Mas Aristóteles já dizia, muito antes de começar a crise do presidencialismo de coalizão brasileiro, que um bom governo depende da virtude do governante.

Dilma governou sem existir politicamente, até ser expelida pelo sistema. Bolsonaro foi uma reação desesperada da maioria dos eleitores brasileiros, que não queriam ver eleito um candidato preso, e claramente não estava à altura do cargo, também por causa do passivo familiar que carregava.

Por último, Lula voltou ao Palácio do Planalto desprovido de qualquer moral, pensando apenas em si, com uma agenda descolada das necessidades do país, e com um discurso de defesa da democracia e do entendimento político que envelheceu muito mal, diante de seu posicionamento sobre as guerras na Ucrânia, em Gaza e no Irã, e do escancaramento do discurso dos “ricos contra pobres”.

O governo ocasional de Michel Temer, no qual as reformas estruturais do país só não avançaram mais em tão pouco tempo por causa do Joesley Day, é a prova de que, mesmo sem ostentar muitas virtudes, o sistema político brasileiro pode funcionar da forma como se estabeleceu após a ditadura militar, ainda que nunca venha a ser considerado ideal nenhum sistema é.

Virtudes

O presidencialismo depende de um presidente à altura do cargo, ou pelo menos com popularidade o bastante para conseguir impor sua vontade, e com capacidade para entender as condições de governabilidade e manejá-las com o mínimo de competência na direção que o país precisa. O Brasil só teve a última dessas condições uma vez desde 2011, por um breve período de tempo e por acaso.

Pode até ser que a adoção do parlamentarismo ou de um semipresidencialismo, como se tem cogitado, contribua para solucionar os problemas com os quais a política brasileira se defronta atualmente, mas, em última instância, tudo dependerá de como os responsáveis por comandá-la se comportarão.

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Rodolfo Borges

Rodolfo Borges é jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, Istoé Dinheiro, portal R7 e El País Brasil.

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Comentários (1)

Clayton De Souza pontes

05.07.2025 22:26

Precisamos de educação para a população e de políticos com vocação pública. Infelizmente a maioria tem desejo de enriquecer e de poder, dificultando nossa jornada


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