E Mujica não mudou o mundo

16.03.2025

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O Antagonista

E Mujica não mudou o mundo

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Rodolfo Borges
6 minutos de leitura 24.11.2024 11:47 comentários
Análise

E Mujica não mudou o mundo

"Me dediquei a mudar o mundo, e não mudei nada, mas me diverti", constatou o ex-presidente uruguaio em entrevista, revelando bem mais do que pretendia sobre as pretensões políticas "progressistas"

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E Mujica não mudou o mundo
Foto: Ricardo Stuckert/ PR

Grande ídolo vivo da esquerda latino-americana, o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica (em destaque na foto), de 89 anos, concedeu uma longa entrevista ao jornal espanhol El País. Falou sobre política e sobre a velhice, a proximidade da morte depois de superar um câncer, e filosofou acerca do idealismo político, para constatar que isso não passou de um passatempo.

Mujica elogiou o “amigo” Lula (ao fundo na foto), como de costume, mas, questionado diretamente sobre a falta de herdeiros políticos para o petista e seus colegas de esquerda no continente, como o equatoriano Rafael Correa, a argentina Cristina Kirchner e o boliviano Evo Morales, respondeu que cansou de dizer “que o melhor líder é aquele que, ao desaparecer, deixa uma barra que o supera com vantagem”.

“Porque a vida continua e a luta continua, não acaba conosco. O líder deve semear e dar oportunidades para ser substituído. Sei que ainda sou uma figura muito importante, mas abri campo. Agora, o que vai acontecer no futuro, eu não sei. Tentarei garantir que os meus colegas não se sintam coagidos, que comandem e gerenciem a organização. Por enquanto, tive sucesso com isso. A minha força política foi a mais votada nas eleições”, comentou.

De fato, Yamandú Orsi, candidato da Frente Ampla, de Mujica, saiu na frente no primeiro turno da eleição presidencial, mas as pesquisas indicam equilíbrio no segundo turno, que ocorre neste domingo, 24, com Álvaro Delgado, do Partido Nacional, apoiado pelo presidente Luís Lacalle Pou, de direita.

América Latina

Questionado sobre a América Latina de Lula, Milei e do ditador venezuelano Nicolás Maduro, Mujica disse que “o panorama é, infelizmente, complicado”.

“Porque nos reunimos muito pouco e não existimos no mundo. Tivemos oportunidade com Lula, que é uma figura global e tem certo prestígio, mas não aproveitamos Lula. Na política internacional nem servimos café. Temos que nos unir para nos defendermos, mas a agenda nacional suga todo o nosso tempo. Com a pandemia de covid, não tivemos reunião de presidentes, nem nos ligamos por telefone. E tivemos o problema de defender a vida das pessoas. Você não poderia ser mais estúpido”, comentou.

O uruguaio reclamou da “pregação ultraliberal” de Milei, Jair Bolsonaro e Donald Trump“Se o liberalismo é isso, é uma imundície. O liberalismo nos trouxe o espírito das relações adultas, do respeito pela convivência com as diferenças; criou uma cultura. Reduzem o liberalismo a um livro de receitas económicas” —, mas não dirigiu qualquer crítica direta a Maduro.

Obama

Na entrevista, Mujica também deu o braço a torcer ao americano Barack Obama, de quem não deveria gostar, de acordo com a cartilha ideológica, apenas por ser americano. Questionado sobre os líderes que mais o cativaram, respondeu Lula e acrescentou: “Curiosamente, tenho que falar bem de Barack Obama”.

O ex-presidente uruguaio gostou das conversar com o então presidente democrata sobre imigração e sobre o Afeganistão, e também se sentiu lisongeado pelo fato de que Hillary Clinton, então chefe do Departamento de Estado, foi enviada para sua posse no Uruguai, em vez do costumeiro embaixador.

Mas desdenhou do Salão Oval da Casa Branca, onde foi recebido quando esteve em Washington:  “É uma merda. Não sei por que o tornaram tão famoso”.

“Mudar o mundo”

A parte mais relevante de sua entrevista, contudo, é aquela em que Mujica admite que não mudou o mundo, ao contrário do que sempre imaginou que faria. “Me dediquei a mudar o mundo, e não mudei nada, mas me diverti”, constatou.

“E fiz muitos amigos e muitos aliados nessa loucura de mudar o mundo para melhorá-lo. E dei sentido à minha vida. Vou morrer feliz, não por morrer, mas por sair de uma barra que me supera em vantagem. Nada mais. Não tive uma vida ruim, porque não passei a vida só consumindo. Passei sonhando, lutando, lutando. Eles me bateram e tudo mais. Não importa, não tenho contas para cobrar. Com Lucía [Topolansky, sua esposa] passamos a nossa juventude em toda esta aventura de viver”, comentou.

Idealismo

Esse raciocínio diz muito mais do que o ex-presidente uruguaio pretendia. Desvela o egoísmo mascarado por aquilo que se vende como altruísmo. E que, não por acaso, se desenvolve com tanta intensidade nos mais jovens — a partir dos interesses direcionados dos mais velhos.

A filosofia de Mujica não é de todo desprezável. Suas críticas aos perigos de degradação pelo consumismo fazem sentido, e sua vida foi levada em harmonia com esse discurso, o que não se pode dizer exatamente da esquerda brasileira.

Questionado sobre o que diria aos jovens, foi bem mais além da política:

“Que a vida é linda, mas é preciso encontrar uma causa para viver. Não necessariamente a minha, mas você tem que ter uma causa. Pode ser música, ciência, qualquer coisa. Viver para pagar dívidas? Isso não é viver. Porque viver é sonhar, acreditar em algo superior, em algo criativo.”

Diversão?

Essa espécie de confissão de que tudo não passou de uma grande diversão — e Mujica foi guerrilheiro tupamaro — lembra um trecho do Arquipélago Gulag, o depoimento mais eloquente sobre as consequências maléficas das tentativas de “mudar o mundo” no século 20.

“Vim a entender a verdade de todas as religiões do mundo: elas lutam com o mal dentro de um ser humano (dentro de cada ser humano). É impossível expulsar o mal do mundo em sua totalidade, mas é possível constringi-lo dentro de cada pessoa, e desde então eu passei a entender a falsidade de todas as revoluções da história: elas destroem apenas aqueles portadores do mal contemporâneo com elas (e também falham, apressadamente, em discriminar os portadores do bem). E elas, então, tomam para si mesmas como sua herança o próprio mal em si, ampliado ainda mais”, constata o russo Alexander Soljenítsin.

Que fiquem de Mujica as lições que valem a pena.

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Rodolfo Borges

Rodolfo Borges é jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, Istoé Dinheiro, portal R7 e El País Brasil.

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