Como Bolsonaro e Ramagem interferiram na Receita para blindar Flávio

18.07.2025

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O Antagonista

Como Bolsonaro e Ramagem interferiram na Receita para blindar Flávio

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Felipe Moura Brasil
38 minutos de leitura 24.06.2025 16:35 comentários
Análise

Como Bolsonaro e Ramagem interferiram na Receita para blindar Flávio

O Antagonista destrincha o relatório da PF sobre a ‘Abin Paralela’ e explica cada etapa dessa operação de blindagem do filho mais velho do então presidente. Entenda

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Felipe Moura Brasil
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Como Bolsonaro e Ramagem interferiram na Receita para blindar Flávio
Foto: Reprodução/ X

O ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União-PR) não foi o único a deixar o cargo durante o governo de Jair Bolsonaro em razão de troca de nomes imposta pelo então presidente para o comando de um órgão de Estado, em operação de blindagem de seu núcleo familiar e político.

O relatório da Polícia Federal no caso da ‘Abin Paralela’, ao descrever o uso bolsonarista do aparato estatal para blindar o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), então investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por peculato, detalha a resistência de outro alvo de pressões: José Barroso Tostes Neto.

Assim como Moro pediu demissão, em 24 de abril de 2020, do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública quando Jair Bolsonaro nomeou, sem justificativa técnica, o aliado Alexandre Ramagem para o lugar de Maurício Valeixo na direção-geral da PF…

…Tostes pediu demissão, em 7 de dezembro de 2021, do cargo de secretário da Receita Federal depois que o então presidente não só impediu em cima da hora a nomeação do auditor Guilherme Bibiani Neto como corregedor-geral da Receita, mas também alterou regra em decreto para emplacar o auditor Dagoberto da Silva Lemos e pressionou Tostes a acatar a indicação do aliado, mesmo sem perfil técnico para o cargo.

Essa ingerência de Jair Bolsonaro foi um dos atos decorrentes da reunião de 25 de agosto de 2020 do então presidente com as advogadas de Flávio, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach; o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e o próprio Alexandre Ramagem, então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que gravou com seu iPhone a conversa, transcrita e analisada no relatório da PF.

Os desdobramentos incluíram outras pressões de Jair Bolsonaro e Flávio, além do uso da Abin por Ramagem para auxiliar na operação.

O Antagonista, em seu compromisso com o registro dos fatos, destrincha essa história à luz do relatório da PF, extraindo os pontos relevantes e explicando cada etapa.

A conversa gravada com advogadas de Flávio

Reconhecendo a dificuldade de defender o cliente das acusações de desvios de recursos públicos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) quando era deputado estadual (“O caminho tem que ser processual, tá? Materialmente é muito ruim. A história é ruim”) e vislumbrando a denúncia a caminho (“Em algum momento o Flávio vai ser denunciado! Na verdade, eu consegui brecar isso com um habeas corpus”), Luciana Pires traçou a estratégia de explorar alegações contra chefes de setores da Receita feitas por auditores alvos de apurações internas.

Com isso, a advogada buscava um pretexto para aliviar o senador e “anular” a Operação Furna da Onça, que, a partir de um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) emitido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), atingiu Flávio no fim de 2018, entre a eleição e as posses dele e de seu pai.

Esse caminho de defesa, porém, tinha, nas palavras da PF, um “empecilho”, uma “circunstância impeditiva”: o então corregedor-geral da Receita, José Pereira de Barros Neto (não confundir com o então secretário, que também tinha José e Neto no nome.)

“É, a nossa impressão é que o Flávio não vai parar de apanhar… E um negócio desse é complicado. Eu entendo o grau de problema que isso pode trazer. Por quê? Porque não é só a Receita Federal do Brasil, é a corregedoria da Receita Federal do Brasil”, disse Juliana Bierrenbach, pintando o senador como vítima, a despeito do histórico de funcionários fantasmas em seu gabinete, apontado e esmiuçado pelo MP-RJ.

Juliana apresentou a Jair Bolsonaro, Ramagem e Heleno a narrativa, baseada em acusações não comprovadas, de que um grupo de auditores estava “plantando ilícitos, recorrentemente para destruir pessoas e reputações, e o corregedor da Receita simplesmente se cala”, “ele está prevaricando”. As advogadas fizeram, no entanto, uma confissão sobre o caso do próprio cliente. “Então, o que que eu tenho? Eu não tenho uma prova de que foi feito isso com o Flávio”, admitiu Juliana. “A gente quer essa prova”, completou Luciana.

Não havia, portanto, indícios de acessos indevidos a dados fiscais do senador, para justificar a solicitação de apuração específica. Havia somente narrativas contra a Corregedoria da Receita Federal, aventadas por servidores processados pela própria Corregedoria por desvios de suas condutas funcionais. Mesmo assim, Juliana defendeu uma demanda ao Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), em busca de evidência, ou melhor, na tentativa de aplicar ao caso de Flávio as narrativas jamais comprovadas de quatro auditores investigados, três deles demitidos – o outro era Antônio Sebastião Marsiglia, irmão do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Pereira Leonel Marsiglia, referido na reunião por Bolsonaro como seu informante.

“Qual é a prova possível de ser produzida? O Serpro, ele produz… Um relatório. Eu até trouxe um arquivo de exemplo, que é uma apuração especial. Chama apuração especial do Serpro”, disse Juliana. Ela também contou ter produzido um “pedido de averiguação”: a rigor, um pedido ao GSI para que o Serpro averiguasse “sistemas de inteligência que atendem à Receita Federal”. (O documento dessa petição foi depois encontrado pela PF nos dispositivos de Ramagem, assim como o RIF.)

De acordo com a narrativa da advogada de Flávio Bolsonaro, “quatro ou cinco pessoas” de hierarquia superior à dos auditores comuns “encomendaram uma senha que torna indetectável o acesso feito por eles” a dados fiscais alheios. “Eles chamam de manto da invisibilidade… E por que que isso é importante para o caso do Flávio?”, questionou ela e logo respondeu: “se a gente conseguir provar que eles fizeram toda essa apuração, e só depois eles criaram esse RIF espontâneo, e por meio dessas senhas invisíveis, a gente consegue a nulidade do RIF. A gente consegue anular tudo.”

Juliana reconheceu que, “se isso aqui vier à tona, a gente vai ser bastante atacada”, mas, diante do então presidente e pai de seu cliente, buscou dar ares heroicos ao plano: “a gente não pode ter receio do que vai acontecer com a gente, das consequências, não dá pra ter covardia se tá atuando numa defesa, especialmente nessa defesa”.

A disposição de Bolsonaro para blindar Flávio

Jair Bolsonaro se dispôs a falar com o então chefe do Serpro, Gustavo Canuto. “Eu caso conversar com o Canuto?”, perguntou ele. “Sim, sim”, respondeu Luciana. “Tentar alertar ele que ele tem que manter esse troço fechadíssimo. Pegar de gente de confiança dele. Se vazar…”, disse Heleno, indicando consciência da natureza não republicana da conduta e a mesma preocupação com vazamento que manifestou na reunião ministerial de 5 de julho de 2022, quando citou outra ação clandestina.

“Tá certo”, concordou Bolsonaro, que, em seguida, tratou de expressar uma alegação preventiva, para o caso de a conversa estar sendo gravada: “E, deixar bem claro, a gente nunca sabe se alguém tá gravando alguma coisa, que não estamos procurando favorecimento de ninguém.” Ora, se não procurava, por que o então presidente (que, em outros trechos, reiterou: “Vai ter problema nenhum falar com o Canuto”, “Eu falo com o Canuto”) teria uma conversa “fechadíssima” com o chefe do Serpro, no contexto da defesa privada de seu filho mais velho em investigação de peculato?

E essa não seria a única conversa do pai do então investigado com autoridade inacessível a alvos comuns. Bolsonaro também se dispôs a falar com o então secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto. “É o caso de conversar com o chefe da Receita”, disse o então presidente. “O Tostes”, completou. “E não, não tem chance dele sai [sic] disso aqui não, né?”, questionou Luciana, temendo vazamento. “Não, o Tostes não”, garantiu Juliana. “É o zero um dos caras. Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele”, garantiu também Bolsonaro.

Ramagem concordou com ambas as conversas anunciadas. “Fala com o Canuto pra saber do Serpro”, reforçou ao então presidente, embora considerasse “mais importante” tratar “com a Receita”. Uma fala de Bolsonaro, pouco depois, ilustrou novamente como ele tinha consciência da natureza não republicana dessas condutas, ou, pelo menos, de que elas poderiam ser assim interpretadas caso fossem descobertas. “Ninguém gosta de tráfico de influência. A gente quer fazer…” Embora o restante da frase tenha ficado inaudível, depreende-se pela narrativa de “perseguição” e “maldade” presente na conversa, e explorada há anos por Bolsonaro, que ele buscava justificar suas ingerências sob o pretexto de impedir abusos contra sua família.

“Eu acredito que a melhor saída é dentro da Receita, pegando sério. Com uma apuração que não tem como voltar atrás. É uma apuração administrativa que se travar, judicializa. Tem que ser lá de dentro”, concluiu Ramagem na reunião.

“Mas tem que ser”, concordou Luciana, que, depois, pregou com todas as letras a remoção dos empecilhos: “Esse pessoal da Receita tem que sair de lá imediatamente.”

O “pessoal da Receita” não era apenas o corregedor José Pereira de Barros Neto. Eram também Christiano Paes Leme Botelho e Cleber Homem da Silva, chefes, respectivamente, das unidades de Corregedoria e Inteligência chamadas de ESCOR07 e ESPEI07. Os auditores demitidos haviam sido alvos dessas unidades.

Os atos decorrentes da reunião gravada

Na conversa, Ramagem disse às advogadas de Flávio Bolsonaro que “Estou acompanhando bem o trabalho. É bom crer que cês tão num caminho bom”, mas, depois da reunião, foi além do acompanhamento anterior.

Ele passou a enviar aos policiais que eram seus assessores diretos e também para Jair Bolsonaro relatórios sobre os três membros da Receita sob a mira do grupo, até encomendar aos subordinados dossiês a respeito desses alvos.

No arquivo “Bom dia Presidente.docx”, acusou Christiano Botelho, do ESCOR07, e Cleber Homem da Silva, do ESPEI07, de conivência com “ilícitos internos” e, ao mesmo tempo, tentou deslegitimar como jogada de “marketing” de ambos uma operação de busca e apreensão em 40 endereços, feita por Receita Federal, Ministério Público Federal e PF, em 18 de novembro de 2020.

“A operação com certeza pegou alguns fiscais ladrões, mas consistiu na realidade em operação de marketing para os chefes do Escor07 (CRHISTIANO PAES LEME BOTELHO) e Espei07 (CLEBER HOMEM). Os mesmos foram informados pela cadeia interna do GRUPO (TOSTES + BARROS NETO) que estão na marca do penâlti e que suas equipes de arapongagem serão descortinadas pela Apuração Especial do SERPRO (caso FB). Estes necessitam portanto mostrar servico [sic] e aparecer como combatedores de corrupção”, escreveu Ramagem.

Sua narrativa pintava Flávio Bolsonaro (“FB”) como vítima de “arapongagem” das equipes de Christiano Botelho e Cleber Homem, e indicava sua esperança de que a alegada armação viesse à tona com a apuração proposta pelas advogadas do senador.

O então diretor da Abin culpou o corregedor José Pereira de Barros Neto por manter a chefia daquelas unidades: “A responsabilidade por esta manutenção de poder no Rio de Janeiro recai sobre a Corregedoria-Geral da Receita em Brasília, no mínimo pela omissão.”

“Este Corregedor-Geral José Pereira Neto, em janeiro de 2019, início do governo, já propagava críticas à Administração”, prosseguiu Ramagem, citando link de jornal que noticiava a crítica feita pelo alvo ao “desmonte em área” da Receita “de combate à corrupção” – desmonte feito pelo governo Bolsonaro sob a alegação de corte de gastos.

“Em razão da ausência de confiança no controle interno da Receita, necessário o detalhamento das irregularidades com apuração especial do SERPRO, e acompanhamento da PF e MPF de Brasília”, recomendou o então diretor da Abin, expandindo o plano traçado na reunião.

A ordem para elaboração de dossiês

Em 20 de novembro de 2020, Ramagem determinou pelo WhatsApp ao policial federal Marcelo Bormevet e ao policial militar Giancarlo Gomes Rodrigues, seus subordinados, que encontrassem, com urgência, “podres e relações políticas” dos auditores Christiano Botelho, Cleber Homem e José Pereira Neto. As mensagens enviadas continham o nome completo e o número de CPF de cada um. “Joga num Word somente”, ordenou o então diretor da Abin. E acrescentou: “Se conseguir, ver rede social de esposa” e “ver se eles têm dívidas tributárias”.

A ordem resultou em consultas aos nomes dos alvos, no mesmo dia 20, no sistema da PF conhecido como Cintepol. Elas foram realizadas por um terceiro subordinado de Ramagem: Carlos Magno, policial federal cedido à Abin (que também acessou indevidamente o Cintepol na ação de blindagem relacionada a Jair Renan Bolsonaro, filho 04 do ex-presidente, que não é foco deste artigo). O registro das consultas, com os respectivos nomes buscados, é reproduzido no relatório sobre a ‘Abin paralela’.

Em 11 de dezembro, porém, uma revista publicou a notícia de que a “Abin fez documentos para orientar a defesa de Flávio no caso Queiroz”, como ficou conhecida a investigação das chamadas ‘rachadinha’ na Alerj, já que o operador apontado pelo MP-RJ era Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio.

A publicação causou preocupação aos arapongas de Ramagem, como mostram mensagens de 21 de dezembro entre Giancarlo Gomes Rodrigues e Marcelo Bormevet: “Porque foram feitas pesquisas nos nomes dos caras da Receita. Precisamos informar ao GAB [Gabinete] para resguardo”, escreveu um para o outro, que, por sua vez, tratou de tranquilizar o primeiro: “Relaxa aí que estamos providenciado as coisas aqui”. A resposta, como analisou a PF, indica montagem de estratégia para evitar o rastreamento e a identificação das consultas, durante procedimento administrativo disciplinar que seria inevitavelmente instaurado para apuração dos fatos noticiados no dia 11.

Nesse procedimento, a Sindicância n° 10/2020 – COGER/ABIN, conforme previsto por um deles na troca, a pesquisa de logs restringiu-se ao período de 11 de julho de 2019 a 31 de outubro de 2020, razão pela qual não foi possível identificar as buscas relacionadas aos auditores da Receita, feitas em 20 de dezembro de 2020.

Segundo a PF, “o andamento do apuratório correicional, ainda, foi prejudicado pelas declarações falseadas prestadas pelo então Diretor ALEXANDRE RAMAGEM e seu subordinado MARCELO BORMEVET. As declarações são contraditórias às ações clandestinas realizadas pela estrutura paralela de inteligência, bem como às próprias anotações do então Diretor da ABIN.”

O relatório da PF contrasta diversas negativas e alegações de Ramagem e Bormevet com várias notas encaminhadas e mensagens trocadas pelos envolvidos na operação de blindagem do filho mais velho do então presidente.

A “Nota Flávio”, escrita pelo então diretor da Abin, por exemplo, ilustra a mistura de adulação a Jair Bolsonaro e alinhamento à narrativa da família de que toda reação institucional a condutas de seus integrantes visava prejudicar o governo.

“Como os números de seu governo estao [sic] sólidos na recuperação do Brasil, aumenta o desespero por uma forma de quebra da credibilidade. Há logica na tentativa de prender o Queiroz para, em delação, arrancar declaração contra o Flávio. Mas a decisão pelas buscas já foi drástica. Essa seria flagrante exagero”, avaliou Ramagem.

Parêntese histórico sobre o caso Queiroz

No fim de 2019, com Flávio já na mira do MP-RJ por um ano, Jair Bolsonaro ajudou o PT a desfigurar o pacote anticrime proposto pelo então ministro Sergio Moro e sancionou o texto final com três “jabutis” defendidos pelo partido de Lula e desejados pela família Bolsonaro: a restrição à delação premiada; a limitação à prisão preventiva; e a criação da figura do juiz de garantias, dividindo em duas etapas a tramitação de processos em primeira instância, que passariam às mãos de outro juiz para a sentença.

Eu, Felipe, publiquei na Crusoé, no começo de 2020, o artigo As decisões petistas de Bolsonaro, do qual sintetizo e reproduzo um trecho que merece ser relido agora:

“A narrativa de que Bolsonaro ‘está enfrentando a esquerda corrupta’ – quando o governo dele compactua com o PT e as suas linhas auxiliares nos pontos legislativos mais sensíveis sobre a investigação de todos os corruptos – é uma retórica enganosa usada pela militância bolsonarista, em sua enésima tentativa de atribuir ao presidente uma valentia moral que ele não tem demonstrado em decisões convenientes, cujas intenções se tornam inevitavelmente suspeitas, considerando que seu filho 01, Flávio, é investigado no caso da ‘rachadinha’ e que existe, em tese, o risco de delação e prisão de seu ex-assessor (e amigo há décadas de Jair) Fabrício Queiroz”.

A “Nota Flávio”, de Ramagem, confirma a “lógica” da preocupação bolsonarista, que apontei na raiz.

Queiroz foi preso em 18 de junho de 2020, na casa do advogado de Jair e Flávio Bolsonaro, Frederick Wassef, em Atibaia, São Paulo. (O então presidente, em sua live, chamou a prisão de “espetaculosa”, como faziam petistas na época da Lava Jato, depois extinta pelo procurador-geral da República indicado por Jair Bolsonaro, Augusto Aras.)

Naquele dia 18, Marcelo Bormevet e Giancarlo Rodrigues passaram a elaborar um dossiê para associar o delegado Osvaldo Nico Gonçalves, da Polícia Civil de SP, responsável pela prisão de Queiroz, ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, relator do inquérito das fake news, que já tinha atingido bolsonaristas e que, no mesmo dia 18, foi avalizado por 10 votos a 1 no plenário do STF.

“Consegue achar relação com Moraes?”, perguntou um. “Vou procurar aqui”, respondeu outro. (Estou evitando dizer qual é qual, porque, em diferentes trocas de mensagens entre Bormevet e Rodrigues, a PF fez atribuições cruzadas dos números de celular dos dois, confundindo o dono de cada número, ou seja, atribuindo a um deles o número que antes atribuiu ao outro, e vice-versa. Os nomes não aparecem nos prints.)

Eles então encontraram uma foto em que o delegado aparece ao lado de Moraes quando o ministro era secretário de Segurança Pública de SP, em notícia sobre uma operação contra torcidas organizadas. O objetivo, diz a PF, era “difundir desinformação”.

Um deles, em mensagem enviada ao outro, ainda admitiu e defendeu o uso de um sistema clandestino para evitar rastros em pesquisas de pessoas politicamente expostas:

“Com certeza tem mais coisa, mas não é o caso de pesquisar em banco de dados institucionais. O Outro [sic] sistema paralelo que uso está em manutenção e amanhã vou renovar a assinatura daqueles dois outros sistemas que eu assino. Depois te falo o valor pq depende da cotação do Euro e do Dolar [sic]”, escreveu um.

“Okay. Ai [sic] tudo me diz o valor”, consentiu o outro.

Os dois aloprados ainda escreveram que Moraes merece tiro de fuzil na cabeça:

“Tá ficando foda isso. Esse careca merece algo a mais”.

“Só 762”.

“head shot”.

(…) “Com esse careca filho da pira só tiro mesmo. Impeachment dele não sai.”

Fecho aqui o parêntese histórico.

Depoimento confirma ações pós-reunião e ingerências

Como relatou a PF, “as ações idealizadas na referida reunião” – de 25 de agosto de 2020, gravada – “foram devidamente executadas, conforme confirmado pelo então Secretário da Receita Federal, JOSÉ BARROSO TOSTES NETO, que registra a petição apresentada pelas Advogadas do Senador FLÁVIO BOLSONARO”.

Em resumo, Tostes confirmou:

– que elas pediram uma reunião com ele e apresentaram uma representação;

– que elas falaram sobre “senhas invisíveis” que deixavam sem registro;

– que ele deu três encaminhamentos à representação: para o setor de tecnologia da informação (sobre “senhas invisíveis”); para a própria Corregedoria da Receita; e para o Ministério da Economia em razão da alegada omissão desta Corregedoria;

– que cada uma das três áreas, incluindo a Corregedoria do Ministério da Economia, produziu o resultado pela improcedência das alegações;

– que as alegadas omissões já haviam sido examinadas exaustivamente, inclusive pelo MP e pelo Judiciário;

– que “tratavam-se de manifestações de servidores inconformados com as respectivas punições”.

O depoimento também explica por que a alegação da defesa de Flávio Bolsonaro sobre o Relatório de Inteligência Financeira (RIF) emitido pelo COAF não faz sequer sentido.

Tostes confirmou:

– que a Corregedoria avaliou como improcedente, por várias razões, a acusação de intercâmbio ilegal de informações com o COAF;

– que o RIF foi feito com base em movimentações bancárias e informações do SISCOAF (Sistema de Controle de Atividades Financeiras);

– que não havia nenhuma informação protegida pelo sigilo fiscal no RIF;

– que a Corregedoria instou o COAF a se manifestar sobre essa acusação;

– que o COAF respondeu que não havia nenhuma evidência e/ou prova de que o RIF teria sido feito com base em intercâmbio de informações com a Receita Federal;

– que o COAF fez a descrição de como são produzidos os RIFS;

– que RIFs são produzidos a partir de informações de instituições financeiras que são obrigadas a informar o COAF (sobre movimentações bancárias atípicas, por exemplo);

– que, em relação às “senhas invisíveis”, a área de tecnologia informou que todos os acessos ficam registrados nos sistemas;

– que, para fins correicionais, a área de tecnologia solicitou apuração especial para verificar se havia acesso imotivado em relação ao senador, suas empresas e familiares;

– que a apuração especial foi feita e não foi identificado acesso indevido por parte da Corregedoria em relação ao senador, suas empresas e familiares.

Como resumiu a PF, portanto, “as alegações sem materialidade direcionadas para o intento privado foram devidamente frustradas”.

A pressão de Flávio Bolsonaro na Receita

Os procedimentos internos instaurados – mesmo sem materialidade, conforme confessaram as advogadas – não foram suficientes para satisfazer Flávio Bolsonaro. Ele próprio, então investigado, demandou reunião com o então secretário da Receita.

Tostes confirmou em depoimento:

– que Flávio pediu reunião com ele;

– que o senador solicitou que ela fosse realizada em seu apartamento funcional, porque ainda estava convalescendo de Covid, sem liberação para sair;

– que Flávio queria saber se já haviam sido concluídas as apurações;

– que Tostes “explicou que não havia fundamento em relação à participação da Receita Federal na produção do RIF e também não havia acessos imotivados dos servidores da Corregedoria em relação ao senador FLÁVIO BOLSONARO, empresas e familiares e do indeferimento do acesso a essas informações”;

– que “não havia base legal para o fornecimento de informações sobre quem eventualmente teria acessados registros do senador FLÁVIO BOLSONARO, empresas e familiares”;

– que “o pedido para obtenção das informações foi indeferido”;

– que “o senador FLÁVIO BOLSONARO falou que não concordava com a decisão e iria recorrer”;

– que, “como foi indeferido pela RECEITA FEDERAL, o senador FLÁVIO BOLSONARO recorreu ao SERPRO”;

– que “o SERPRO, também, indeferiu o pedido do senador”;

A pressão de Jair Bolsonaro na Receita

Como relatou a PF, “a resistência do Secretário da Receita Federal [Tostes] para os intentos sem arcabouço legal resultou na interferência na Receita Federal”.

O então presidente Jair Bolsonaro “impediu a publicação da nomeação do auditor-fiscal GUILHERME BIBIANI NETO como Corregedor-Geral do órgão, cuja indicação já estava aprovada pelo Ministério da Economia, Controladoria-Geral da União e Casa Civil, aguardando tão-somente a publicação”.

O relatório reproduz portarias assinadas pelo então ministro Paulo Guedes, com a nomeação de Guilherme Bibiani (nada a ver, registre-se, com o ex-ministro Gustavo Bebianno) e a exoneração de José Pereira de Barros Neto do cargo de corregedor-geral. Mas mostra que só a exoneração foi publicada no Diário Oficial da União (DOU).

Tostes explicou o episódio, passo a passo, em depoimento:

– “que, após os indeferimentos” dos pedidos da defesa de Flávio Bolsonaro, “o mandato do corregedor José Pereira de Barros Neto estava se encerrando e não haveria possibilidade de renovação”.

– que Tostes “fez uma seleção com a participação da própria Corregedoria e identificou auditor com perfil técnico, capacidade, experiência e que atendesse todos os requisitos para ser indicado ao cargo”, no caso Guilherme Bibiani;

– que encaminhou o nome do auditor para ser nomeado;

– que o nome foi aprovado na CGU e na CASA CIVIL em todas as instâncias;

– que as duas portarias (de exoneração e nomeação) foram assinadas pelo ministro;

– que recebeu as duas portarias que seriam publicadas no dia seguinte;

– que, no dia seguinte, procurou saber por que a nomeação não foi publicada;

– que “foi informado pelo gabinete no Ministro da Economia que não havia sido publicada a portaria de nomeação do corregedor GUILHERME BIBIANI por ordens superiores;

– que, “logo em seguida, foi chamado” pelo então presidente Jair Bolsonaro;

– que, nesta reunião, Bolsonaroafirmou que não concordava com a nomeação do auditor” indicado “porque tinha a preocupação de que o novo corregedor tivesse a mesma linha de perseguição a ele e aos seus familiares”;

– que Tostes “rebateu e esclareceu que todas as investigações e apurações feitas não indicaram nenhuma prova que havia esse tipo de perseguição”;

– que Bolsonaro novamente “rebateu e disse que mesmo assim tinha a percepção de que havia perseguição e que ele precisava que assumisse uma pessoa na Corregedoria da confiança dele”;

– que Bolsonaro “entregou um papel com um nome do auditor que queria indicar: DAGOBERTO DA SILVA LEMOS”;

– que Tostes esclareceu a Bolsonaro “que não conhecia DAGOBERTO DA SILVA LEMOS e que não poderia indicá-lo pois precisaria verificar se o indicado… tinha o perfil técnico, capacitação, experiência e se preenchia os requisitos”;

– que Tostes “saiu da reunião e foi verificar quem era o indicado e o histórico”;

– que Tostes “verificou que não tinha o perfil porque nunca havia trabalhado na correição”, “era um auditor da área aduaneira e passou muito tempo no sindicato”, “não preenchia os requisitos do decreto presidencial e da portaria da CGU porque ele estava aposentado” e “no decreto o corregedor deveria ser servidor da ativa”;

– que “encaminhou as informações” a Bolsonaro e “esclareceu que não poderia aceitar a indicação”;

–  que, “alguns dias depois”, “houve a alteração do Decreto Presidencial que estabelece os requisitos para nomeação ao cargo de Corregedor”, abrindo “a possibilidade de nomeação de servidores aposentados ao cargo”;

– que “essa não era a única condição que o auditor indicado não atendia”;

– que, “por exemplo, o auditor não tinha experiência e/ou especialização”, “jamais tinha trabalhado na área correicional e “iria exercer atividade de Corregedoria sem jamais ter passado na área de Corregedoria”;

– que Tostes “manteve a posição de não aceitar o auditor indicado” por Bolsonaro;

– que “se criou o impasse”;

– que Tostes “insistiu na publicação da portaria do auditor GUILHERME BIBIANI” e Bolsonaro “insistiu na nomeação do auditor aposentado DAGOBERTO DA SILVA LEMOS”;

– que como Tostes “não cedeu e a pressão continuou”, “ficou evidente que ou o depoente aceitava ou estaria fora” e “nesse momento o depoente pediu exoneração de Secretário Geral da Receita Federal”.

Dagoberto da Silva Lemos havia sido diretor do Sindifisco, o sindicato que acolhia as alegações feitas por auditores punidos contra os corregedores, ou seja, as alegações usadas pela defesa de Flávio para tentar anular a Operação Furna da Onça.

O decreto alterado por Jair Bolsonaro para interferir na Receita

Jair Bolsonaro alterou o Decreto nº 5.480, de 30 de junho de 2005, que, em seu artigo 8º, dispõe sobre requisitos para ocupação de cargos em unidades setoriais de correição.

O então presidente fez a alteração com a publicação do Decreto nº 10.768, de 13 de agosto de 2021, que incluiu no texto original o inciso II, permitindo que o corregedor-geral fosse servidor aposentado da carreira: “II – ex-servidor ou ex-empregado permanente aposentado no exercício de cargo ou emprego”.

Essa não foi a única vez que Jair Bolsonaro participou da alteração de uma regra que reforçaria sua operação de blindagem do filho mais velho contra investigações.

Parêntese histórico sobre alteração de regras para blindar Flávio

Jair Bolsonaro sancionou em 2 de junho de 2022 o novo Estatuto da Advocacia, que respaldou a defesa de Flávio Bolsonaro no caso da mansão de R$ 6 milhões que havia comprado em Brasília, em 2021.

O então presidente – embora tenha vetado outros pontos do projeto de lei (PL) 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) – não vetou o parágrafo 4º do artigo 5º, que autorizava acertos contratuais “de modo verbal”:

“As atividades de consultoria e assessoria jurídicas podem ser exercidas de modo verbal ou por escrito, a critério do advogado e do cliente, e independem de outorga de mandato ou de formalização por contrato de honorários”, diz o dispositivo.

Flávio havia se tornado alvo de questionamentos judiciais sobre a origem do dinheiro e vinha alegando que sua atividade como advogado o ajudara a pagar o valor da casa, mas não dava detalhes dessa atuação. Além disso, seu nome não constava em processos que tramitam na Justiça do Rio ou da capital federal. Com a sanção paterna, acabou não precisando provar a existência dos contratos pelos quais teria sido remunerado.

Esse dispositivo foi criticado por juristas, como José Alberto Couto Maciel:

“Não há recibo porque tudo é verbal e eu posso amanhã, por exemplo, comprar uma casa e dizer que ganhei o valor que paguei pelo imóvel de honorários de um cliente. Ora, pelo referido parágrafo não preciso dizer quem foi o cliente que me pagou nem quais os honorários, nem necessito apresentar recibo ou contrato.

Parece-me, ‘data vênia’, que os representantes da advocacia que atuaram junto ao Congresso Nacional, o Congresso Nacional e o próprio Presidente da República que sancionou a lei, estão conferindo aos advogados a abertura legal para o ‘caixa 2’”, escreveu Maciel uma semana após a sanção presidencial, que efetivou a Lei nº 14.365.

O projeto de lei havia sido apresentado em 2020 com o objetivo de limitar operações de busca e apreensão realizadas pela PF em escritórios de advocacia. O texto foi aprovado no Congresso em 2022 sem qualquer resistência da família Bolsonaro.

Curiosamente, em novembro de 2024, quando Flávio passou a atuar como advogado em tribunais superiores, onde seu pai havia nomeado ministros, o senador deixou escapar, sem se dar conta das alegações passadas, que estava no “início” da atividade:

“Eu esperei até meu pai deixar de ser presidente e sempre quis atuar como advogado. Ainda estou no início, mas sinto que é uma atividade que me dá muita gratificação.”

Não só a ele. No sábado, 21 de junho de 2025, a Folha publicou uma matéria intitulada Advocacia de parentes de ministros em ações no STJ provoca incômodo no tribunal (um tema recorrente em O Antagonista e Crusoé, onde, aliás, publiquei a análise Cai o tráfico, fica a influência, de 14 de março de 2024).

No meio da reportagem do jornal paulista se lê o seguinte:

“Um ministro do STJ afirmou, sob reserva, que os problemas relacionados à atuação de parentes se agravaram depois de uma lei sancionada em 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), que trata de atividades privativas de advogados.

Essa lei alterou o Código de Processo Civil e prevê que atividades de consultoria e assessoria jurídica ‘podem ser exercidas de modo verbal (…)’.

Com isso, advogados fazem contratos particulares com as partes e não entram com procuração nos autos.”

Esse mecanismo de acobertamento do lobby familiar em tribunais é mais uma herança da operação de blindagem de Flávio para a República brasileira.

Fecho aqui o segundo parêntese histórico.

Quem a família Bolsonaro emplacou na Receita Federal?

Com a saída de José Barroso Tostes, Jair Bolsonaro nomeou, em 7 de dezembro de 2021, para o cargo de secretário da Receita, com a bênção de Flávio, o auditor Julio César Vieria Gomes, diretor jurídico do Sindifisco, o sindicato hostil aos corregedores e alinhado aos interesses do senador.

O nome de Dagoberto da Silva Lemos acabou descartado em meio à repercussão das notícias e dos bastidores das trocas, mas o novo secretário trouxe como corregedor-geral outro então aliado da família Bolsonaro: o auditor João José Tafner.

Como relatou a PF ao reproduzir foto de Tafner abraçado a Eduardo Bolsonaro em manifestação bolsonarista, ele “possuía manifestações ostensivas de apoio político-partidário ao Presidente da República e seus familiares”.

Quinze meses depois, em 9 de março de 2023, no entanto, o próprio Tafner pediu exoneração, após ter denunciado, como relatou a PF, que sofrera pressão de integrantes da Receita para poupar o também auditor Ricardo Pereira Feitosa de punição em procedimento administrativo disciplinar (PAD), embora sua própria defesa tenha afirmado que “a existência de acesso está provada e confessada”.

Feitosa – que fez parte do governo de transição e acabou nomeado pelo então secretário da Receita, Marcus Cintra – quebrou irregularmente, em 10, 16 e 18 de julho de 2019, sigilos fiscais de desafetos da família Bolsonaro, como o empresário Paulo Marinho, o ex-ministro Gustavo Bebianno e o ex-procurador-geral de Justiça José Eduardo Gussem, que chefiava o MP-RJ na época da investigação sobre Flávio.

A defesa do senador buscava encontrar algum acesso indevido a seus dados, mas quem havia feito exatamente isso, contra alvos dos Bolsonaro, era um auditor bolsonarista.

A “perseguição” está nos olhos de quem vê?

Parêntese histórico sobre pressões anteriores e confissões de Jair Bolsonaro

Em 8 de dezembro de 2021 – um dia depois, portanto, de ter nomeado Julio César Vieria Gomes como secretário da Receita Federal –, Jair Bolsonaro assumiu que esperava de Sergio Moro uma interferência em órgãos de investigação enquanto o ex-juiz da Lava Jato era ministro da Justiça de seu governo.

Com uma mescla de confissão enviesada e vitimismo, no estilo particular de ‘sincericídio’ que volta e meia o acomete, o então presidente declarou:

“Esse cara não fez absolutamente nada para que COAF, a Receita, não bisbilhotasse não só a minha vida como a de milhares de brasileiros. Isso nos atrapalha. Você pode investigar o filho do presidente? Pode. Você pode investigar a mulher do presidente? Pode. Mas investiga legalmente, com uma alegação formal. Eu posso ser investigado, mas não dessa forma como eles fazem.”

Jair Bolsonaro ainda acrescentou: “Queria mandar embora lá atrás. Mas, como ele tinha prestígio grande, ficava difícil justificar.”

O relatório do COAF sobre movimentações bancárias atípicas de Fabrício Queiroz veio à tona em dezembro de 2018, entre a eleição e a posse presidencial, de modo que Moro, embora já tivesse aceitado o convite para o ministério, nem empossado estava.

Em setembro de 2019, o próprio Jair Bolsonaro demitiu o então secretário da Receita, Marcos Cintra, com quem havia se irritado, um mês antes, em razão de uma apuração do órgão sobre seu irmão de Miracatu-SP, Renato Antônio, que já havia aparecido na imprensa como funcionário fantasma da Assembleia Legislativa do Estado (Alesp).

Além de ter descido a borduna em Cintra durante uma reunião, acusando a Receita de perseguir sua família, o presidente havia declarado em agosto daquele ano que “fizeram uma devassa na vida financeira dos meus familiares do Vale do Ribeira”.

“Vai achar alguma coisa errada? Acho que qualquer estabelecimento comercial você vai achar uma coisa errada e aí vão potencializar isso daí. Não conseguem me atingir, vão para cima de parentes meus. Uma vergonha”, resmungara Jair Bolsonaro, como se seus familiares não devessem ser alvo de apuração por coisas erradas.

Ele repetiu o resmungo na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado um mês depois, em 22 de maio, pelo então ministro do STF Celso de Mello, no âmbito do inquérito sobre a interferência do então presidente na Polícia Federal. Jair Bolsonaro disse, na ocasião, não querer “ver a minha irmã de Eldorado, outra de Cajati, o coitado do meu irmão capitão do Exército de lá de Miracatu se foder, porra! Como é perseguido o tempo todo”.

Como expliquei na análise audiovisual Os vídeos de Bolsonaro e a interferência na PF– que, publicada em 23 de maio de 2020, gerou mais de 620 mil visualizações no Youtube e a mobilização virtual bolsonarista para me atacar –, foi neste contexto de ira contra investigações sobre seu núcleo familiar e político que Jair Bolsonaro justificou a troca do diretor-geral da corporação, inclusive para que seu substituto fizesse o que o então presidente não havia conseguido fazer por conta própria: trocar o chefe da Superintendência da PF fluminense:

“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira.”

Em 15 de agosto de 2019, Jair Bolsonaro havia declarado na saída do Palácio da Alvorada:

“Todos os ministérios são passíveis de mudança. Vou mudar, por exemplo, o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro.

Duas semanas antes, em 2 de agosto de 2019, o juiz eleitoral Rudi Baldi Loewenkron havia determinado o envio, justamente para a PF do Rio, de um inquérito que – depois seria arquivado, mas – apurava se Flávio Bolsonaro cometeu lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral ao declarar seus bens nas eleições de 2014, 2016 e 2018.

No relatório sobre a ‘Abin Paralela’, a PF acrescentou que a PF do Rio também esteve na mira do então diretor da agência: “ALEXANDRE RAMAGEM RODRIGUES, após sua cessão à ABIN, obteve e imprimiu lista com inquéritos policiais federais eleitorais da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro”. A data de referência da lista é 28 de fevereiro de 2020, dois meses antes da referida reunião ministerial.

A PF mostrou, também, print da mensagem que havia sido enviada a Ramagem por uma assessora legislativa de Carlos Bolsonaro, Luciana Paula Garcia da Silva Almeida, “precisando muito de uma ajuda” sobre inquéritos “envolvendo PR e 3 filhos”; e citando o nome de uma delegada da PF que, curiosamente, era responsável pela investigação envolvendo o uso da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para interferência nas eleições de 2022. A assessora de Carluxo chegou a alegar em depoimento que “PR”, referência comum ao “Presidente da República”, seria um pastor com três filhos; mas a PF a desmentiu, apontando que a versão “não possui lastro factível”.

Sergio Moro, que deixou o governo em razão da troca do diretor-geral da PF, comentou o ‘sincericídio’ cometido em 8 de dezembro de 2021 por Jair Bolsonaro (de quem só se reaproximaria no segundo turno de 2022, na disputa contra Lula):

“Nós combatemos o crime organizado. Nós conseguimos reduzir a criminalidade violenta. Mas o presidente sabotou o combate à corrupção. Ele mesmo disse hoje que não gostava de mim porque eu não protegia lá a família dele de investigação da Receita ou do Coaf. Quando chegou o momento que ele queria que eu fizesse isso e eu não concordava, eu saí, ainda lá em 2020. Eu não vou trair os valores e princípios do povo brasileiro para atender ao presidente da República.”

O ex-ministro ainda explicou que a gota d’água foi a decisão de Jair Bolsonaro de interferir na PF: “Aí eu falei ‘não, agora eu não posso ficar mais’. Agora é uma escolha entre ser alvo de ataques do grupo dele ou ser cúmplice dele. Eu prefiro ser alvo.”

O contexto de ira contra investigações sobre seu núcleo familiar e político ficou ainda mais claro com a revelação das mensagens enviadas pelo então presidente antes da troca, entre outros episódios e relatos ocorridos depois, como mostrei nas análises audiovisuais: As verdades inconvenientes de Moro sobre Bolsonaro, Os relatos de Moro sobre Bolsonaro, Flávio e Lula e Até Heleno contradiz Bolsonaro.

Fecho aqui o terceiro parêntese histórico.

Como a PF resumiu a operação de blindagem de Flávio?

Em relação à operação de blindagem de Flávio Bolsonaro – que constitui apenas uma parte de um relatório muito mais extenso e detalhado (são 1.125 páginas) sobre várias frentes de atuação da ‘Abin Paralela’ – a PF concluiu, entre outros pontos, o seguinte:

“As evidências aqui apresentadas mostram, desde seu nascedouro”, na reunião gravada, “uma série de atos destinados à proteção do núcleo familiar do então Presidente da República”, incluindo, entre outras condutas:

“ações de pesquisa e produção de dossiê em face de auditores-fiscais”;

– “pressão para a saída do então Secretário JOSÉ BARROSO TOSTES NETO, o que acabou ocorrendo”;

– “alteração de Decreto Presidencial para permitir que o nome de interesse (…) pudesse ser nomeado”;

– e nomeação de corregedor-geral, como já dito, “que possui ostensivas manifestações de apoio político-partidário ao então Presidente e seus familiares”.

“Toda a movimentação realizada, com a utilização de aparato estatal, deu-se, tão somente, para atender aos interesses da estratégia de defesa das Advogadas do Senador FLÁVIO NANTES BOLSONARO, evidenciando mais uma vez a utilização das estruturas de estado na proteção dos integrantes do núcleo familiar do ex-Presidente.”

A história do Brasil e a configuração de crimes

A parte final do relatório da PF, como de costume, elenca as pessoas indiciadas e lista os motivos de indiciamento, incluindo uma série de tópicos relacionados a outros casos não abordados aqui. Mas essa é outra discussão.

O presente artigo não analisa imputação de crimes, mas, sim, reconstitui, contextualiza e organiza fatos históricos relacionados à operação de blindagem de Flávio Bolsonaro, esta que foi muito além dos elementos contidos no relatório, como mostrei ao longo dos anos em diversos artigos e comentários sobre a sabotagem da Operação Lava Jato e da CPI da Lava Toga, e o afrouxamento das leis penais, entre outras medidas que até hoje produzem efeitos na República e na sociedade brasileiras – entre eles, o fortalecimento da esquerda lulista e do sistema que o bolsonarismo jurou combater. (A propósito: Flávio acabaria blindado no STF por Dias Toffoli e Gilmar Mendes, alvos da CPI que ajudou a barrar.)

Esse capítulo da história do Brasil, portanto, precisava ser contado e registrado para a posteridade, ainda que massas de manobra – que não leem mais que sínteses de propaganda em rede social – continuem se deixando hipnotizar pelo discurso, enquanto, em nome do suposto combate ao outro lado, ignoram, relativizam ou relevam as práticas de seus políticos de estimação.

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Felipe Moura Brasil

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Comentários (7)

Kubrio

26.06.2025 12:20

Excelente reportagem. Lamentável que esse seja o nosso país. Pelo menos estamos tendo a oportunidade de conhecer os fatos. Grata ao Felipe Moura Brasil e à O Antagonista!!


Jorge Augusto Vasconcelos Alves

25.06.2025 17:29

Os próprios membros da corte suspeita perseguiram auditores por eles e suas esposas terem sido fiscalizados. É garantido que cometerão novo crime togoso ao anular esta investigação sobre o clã, uma vez que eles mesmos o fizeram quando alvos. Podem escrever o que digo: a corte suapeita não condenará ninguém por corrupção, a não ser que a pena de prisão mansional possa ser aplicada, e por pouco tempo.


MARCOS

25.06.2025 10:36

NUNCA DUVIDEI DA EXISTÊNCIA DAS "RACHADINHAS" QUE OS POLÍTICOS FAZIAM E FAZEM. PILANTRAS.


Fabio B

25.06.2025 09:21

Ao Blindar o Flávio, ele na verdade está se blindando, pois o esquema não é do Flávio, mas do próprio Bolsonaro e do clã inteiro junto. Se cair um nesses inúmeros esquemas, dá para puxar o fio e prender todo o resto dessa família de degenerados.


NIEMEYER FRANCO

24.06.2025 18:46

Ainda assim, boa parte da imprensa, a sua maioria digamos, ficou maluca também. E continua.


Marcos Rezende

24.06.2025 17:17

Bandidos são bandidos e tem quadrilha para se protegerem. Esse é o BOZO que seus MALUCOS defendem.


Liana

24.06.2025 16:54

Parabéns! Não podemos esquecer! Não podemos deixar ouls outros desconhecerem


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